Encerraram-se
as eleições municipais. Não que isto tenha representado para mim algo extraordinário,
em si mesmo. Aliás, confesso que, pessoalmente, a notícia da renovação dos
indivíduos que compõem as câmaras municipais e cargos do executivo no âmbito municipal
foi por mim recepcionada com certa apatia. Entretanto, não sem apatia percebi a
reprodução de algumas coisas. Confesso que me utilizei tão somente das redes
sociais para observá-las, mas que me apresentaram um quadro interessante.
A
primeira delas foi a reeleição de políticos exaustivamente criticados pela
população. Refiro-me àqueles que, por vezes, envolveram-se em escândalos de
corrupção, que votaram favoravelmente ao aumento de salários, do número de cadeiras
nas câmaras, etc., que foram severamente censurados por boa parte da sociedade,
mas que reassumirão seus cargos. Não citarei nomes, mas creio que o leitor não deverá
fazer um esforço mental muito grande para identificar alguns deles em seu
município.
Em
segundo lugar – e devo admitir que este foi o que mais me surpreendeu – uma
espécie de inconformismo geral em relação a eleição de alguns candidatos,
digamos, “exóticos”. As redes repentinamente se encheram de críticas, lamentos
inconformados, xingamentos, enfim, as mais variadas expressões de reprovação
com relação a estas figuras. Trata-se de candidatos que costumeiramente
aparecem nos pleitos municipais: o “Tião da Muleta”, o “Zé da Lata”, entre
outras figuras que, com muitas piadas, chavões, perfomaces cômicas e pouco discurso político, mais parecem
personagens de um stand up do que candidatos.
Chamou-me a atenção, sobretudo, os apelos à cidadania que alguns pareceriam
heroicamente conclamar, à falta de sanidade mental dos eleitores, à falta de “consciência”
dos que votaram nulo ou nestes candidatos, à vergonha que sentiam de morarem
num país que elegeu como deputado um “palhaço” e agora vereadores que não sequer
sabiam escrever o nome.
O
mais interessante, a meu ver, é que tudo parou por ai. Tenho que fazer justiça
a alguns que demonstrou uma preocupação do tipo “agora temos que fiscalizá-los”,
mas tão somente isso. Realmente, estas eleições me inclinaram para uma questão extremamente
relevante: como estamos acostumados a nadar apenas no raso e nos conformarmos
com o resto. Em outras palavras: culpa-se a “inconsciência” do povo brasileiro,
ataca-se sua “sanidade mental”, à baixa escolaridade dos eleitos, à falta de
propostas, enfim, como se isso fosse o problema principal.
O
que quero dizer, leitor, é que com muita facilidade se lançam tais juízos de
valor partindo-se do ponto de vista confortável e negligente (para não dizer
cínico) de que vivemos em uma plena democracia, onde os candidatos ditos “sérios”
livremente exerceriam – quando eleitos – seus mandatos norteados por um místico
“espírito cívico” pelo bem geral da nação (aqui, dos municípios). O que se
verifica na prática é que, alfabetizados e analfabetos, políticos “sérios” ou “exóticos”,
não passam de instrumentos que gravitaram nas mãos de outras pessoas, essas
sim, que deverão desempenhar papéis políticos já previamente definidos aos
pleitos eleitorais. As cartas do jogo político já foram distribuídas pelos
grupos que sustentam o poder: as grandes empresas que não são eleitas por nós,
mas monopolizam os lobbys e o tráfico
de influência que fazem a máquina pública se mover de fato. Aos eleitos, na
maioria das vezes, só cabe sentar à mesa e jogar segundo as regras da mesa.
É
incrível a presença, nestes “protestos”, de um inconsciente sentimento de
conformismo com esse status quo de democracia
meramente “formal” que estamos obrigatoriamente inseridos sem que haja
qualquer abertura a negociação para construção de uma via diversa. Como já disse José Saramago, sobre globalização e as corporações econômicas e financeiras: “claro que não estão dispostas a negociar. E
não estão dispostas a negociar porque sequer necessitam. Tem um intermediário
que se encarrega de apagar os fogos, mais ou menos, que se manifestam aqui e
além. E esses intermediários são os governos nacionais. Quer dizer, os governos
transformaram-se em comissários políticos do poder econômico”. E continua: “não podemos continuar a chamar esta
fantochada... ou se quer um termo mais delicado, com essa fachada, que é
continuar a chamar de democracia algo que não tem nada a ver com democracia.
Vivemos num regime plutocrático, o governo dos ricos sobre os pobres, e isto
com um sistema que podemos chamar representativo, e politicamente
representativo e só”.
De
que adianta todo esse inconformismo se candidatos “sérios” e “exóticos”, ao
tomarem posse, farão, em regra, exatamente o que outros homens não eleitos lhe dirão
para fazer, nas coxias do cotidiano político? Até quando resignar-se a esta
preguiçosa e inerte crítica aos que votaram no palhaço, no malabarista do sinal,
etc., quando na verdade, salvo em raríssimas exceções, mesmo os políticos ditos
“sérios” cumprirão uma agenda já preparada pelos que realmente detém o poder? Como
já disse o prof. David Harvey[1],
não existem grandes homens, mas homens que controlam redes de pessoas com
maestria. Assim foi a eleição de Reagan na década de 1980: “O triunfo da estética sobre a ética não
podia ser mais evidente. A construção de imagem na política nada tem de
novidade. O espetáculo, a pompa e circunstancia, o comportamento, o carisma, o
paternalismo e a retórica há muito são parte da aura do poder político. E
também o grau até o qual isso pode Sr comprado, produzido ou adquirido de outra
maneira há muito é importante para a manutenção desse poder (...) A eleição de um ex-ator de cinema, Ronald
Reagan, para um dos cargos mais poderosos do mundo dá uma nova dimensão às
possibilidades de uma política mediatizada apenas moldada por imagens”. Na
sequencia, explica a razão disto: ““O
presidente teflon”, como ele veio a ser conhecido (simplesmente porque nenhuma
acusação lançada contra ele, por mais verdadeira, parecia colar), podia cometer
erro após erro, mas nunca ser chamado a prestar contas” (HARVEY, p.
295-296).