quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Súmula 363 TST: Não existe corrupção sem corruptor?

            Em alguma aula de direito administrativo sobre processos licitatórios, falava o professor que um dos principias problemas da lei brasileira é não punir os corruptores quando há escândalos envolvendo a Administração Pública. Explicava que quando alguma licitação é superfaturada (e o Contorno Norte está ai pra comprovar isso), a legislação pune apenas o corrompido: aquele que surrupiou o dinheiro público para si. Mas e quanto a todos ou outros que participaram da falcatrua? O funcionário que faz vista grossa a números exorbitantes nas contas públicas, prefeitos que “inocentemente não enxergaram” problemas com a empresa que ganhou a licitação, apesar dela ser de algum parente seu, etc.? Bem, normalmente saem ilesos. 

Infelizmente, quando falamos sobre a máquina pública no Brasil, falamos sobre um ente extremamente privilegiado. Nos frívolos vai e vens da internet, acabei lendo algumas decisões de tribunais baseadas na Súmula 363 do Tribunal Superior do Trabalho (TST)[1]. Para os que não sabem, ela trata do trabalho no serviço publico quando se contrata funcionários sem concurso, dizendo que “A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS”. Traduzindo: se você trabalha para o Estado e não é concursado, dê adeus aos seus direitos trabalhistas com exceção do salário e fundo de garantia.
E é ai que entra a mordomia pública.
Não me posiciono contra o concurso público, pois penso que ele é um meio democrático de selecionar empregados para a Administração Pública. Aliás, ressalto que é importante que o Estado zele pela correta realização dos concursos públicos, combatendo e prevenindo fraudes de qualquer natureza. Também não critico o trabalhador que labora nestas condições, haja visto que muitas vezes é o emprego que conseguiu para colocar o pão em sua mesa.
O problema que ELE é quem paga pela anômala contratação feita pelo Estado. Edita-se uma lei criando novos postos de trabalho, pessoas começam a trabalhar (afinal, a Administração Pública desfruta de presunção de legalidade dos atos administrativos por lei, existindo, logo, presunção de que a lei é constitucional), e quando estas pessoas reclamam seus direitos, a lei diz “Não! Afinal, vocês não tem concurso público”. Devo resaltar que em uma das decisões que li (veja aqui) o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 9ª região entendeu que, apesar de nulo o contrato de trabalho em virtude da irregularidade, o Estado deveria pagar todos os valores referentes aos débitos trabalhistas a título de indenização. Afinal, quem fez a coisa da maneira incorreta não foram os trabalhadores. Entretanto, basta ingressar com recurso ao TST para que estas indenizações sejam anuladas.
O privilégio do Estado é evidente nestes casos. Contrata irregularmente seus funcionários e estes tem seus direito reduzidos, por força de lei, em virtude desta contratação irregular. É como se o ente público não tivesse condições de saber que estava fraudando a relação de emprego, ou seja, como se nunca agisse de má-fé ou com intuito de contornar passivos trabalhistas. Em suma, a lei obriga todos os empregadores do país a pagarem os débitos laborais, e libera a barra da Administração Pública. Ela obedece a CLT se quiser obedecer. Respeita o art. 2º da Lei 8.112/97 (não proporcionando aos empregados a devida “investidura” no cargo público) se quiser respeitar também. Se não, ficam livres para criar cargos sem concurso, ao arrepio da lei, utilizam-se da mão de obra destes trabalhadores, e depois se valem da mesma Justiça para negarem qualquer pagamento além do salário pelos dias efetivamente trabalhados e FGTS referente a este tempo de serviço.
Pode até ser que o Estado seja processado e condenado em juízo por enriquecimento ilícito, ao subtrair tais direitos por meio desta contratação irregular. Mas o empregado que labutou... não verá a cor do dinheiro desta condenação que, como bem sabemos, provavelmente demorará um bom tempo tramitando na Justiça. Não entendo como pode ser coerente que aquele que frauda a relação de emprego se desonere de indenizar o fraudado. Talvez possa parecer exagerado dizer que o empregado é punido na aplicação da Súmula 363 do TST, mas certo é reconhecer que, no mínimo, é a parte injustamente onerada. Sabias as palavras do professor de administrativo: “Não existe corrupção sem corruptor”, entretanto, o corruptor é privilegiado.


[1] Quem tiver a curiosidade de ler, clique aqui, aqui, aqui.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Terceirização no setor Têxtil em Santa Catarina


O fenômeno da terceirização, devo confessar, é um tema que tem me intrigado há algum tempo. Percebo que nas aulas de direito do trabalho, nos preocupamos em determinar o que “pode” ou “não pode” pela lei, o que o legislador quis dizer aqui e ali, entre outras reflexões do gênero. Entretanto, raramente somos impelidos a refletir sobre casos concretos, isto é, o que tem ocorrido de fato no mundo do trabalho terceirizado. Quais seriam os reflexos para a produtividade da empresa, ao controle de qualidade, em relação à precarização do trabalho, em suma, coisas ligadas ao cotidiano de empregados e empregadores que lidam com ela no dia-a-dia?
Movido por este ímpeto de curiosidade, dediquei-me no intervalo das atividades de meu estágio à leitura de um artigo a respeito do assunto. Trata-se de uma pesquisa[1] que analisou as mudanças que a terceirização trouxe a uma empresa do ramo do vestuário em Santa Catarina. A autora, partindo de uma dissertação de mestrado[2] de 1995 a respeito das condições de trabalho de uma empresa, voltou ao mesmo local pesquisado para constatar mudanças ocorridas ali. Verificou-se que a terceirização acarretou em precarização do trabalho, quando comparado às condições que tinham os trabalhadores em 1995 e os de 2007.
Trata-se de um texto bem rico, que renderia paginas e páginas de discussão neste blog. Em suma, a autora apresentou quatro aspectos que mudaram em relação à organização do trabalho ao longo de doze anos: o controle sobre a qualidade, o controle sobre a produtividade, a multifuncionalidade dos trabalhadores e o trabalho em equipe.
O controle sobre a qualidade tornou-se muito maior. Quando entrevistados, os trabalhadores revelaram que qualquer pequeno erro nas peças costuradas já se torna motivo para que a peça toda seja reformulada. Além disso, peças defeituosas deveriam ser descontadas do salário dos trabalhadores pelo preço de fábrica (e não pelo preço que as seções pagavam aos trabalhadores pela feitura da mesma, evidentemente muito menor). Quem teve a oportunidade de assistir o programa “A Liga”, exibido dia 16/08, observou que nos casos de trabalho escravo verificados nas oficinas terceirizadas da Zara, ocorriam semelhantes procedimentos.
Quanto à produtividade, a autora revelou serem muito mais rígidas do que anos antes. Isto porque o antigo sistema de cronometragem (onde se cronometrava o tempo médio de feitura de uma peça, para que se estabelecesse um ritmo de produção), que cadenciava a produção, foi substituído por um sistema de metas. Assim, intensificou-se a produção, pois agora tem metas a cumprir que lhes impõe um desgaste maior do trabalhador, que tem que se desdobrar para cumprir as cotas de produção ao invés de preocupar-se apenas com seu trabalho. É um controle mais sofisticado: ao invés de exigir-se mais de cada funcionário, individualmente, coloca-se sobre os ombros de todo o grupo para que se arrumem da maneira que for preciso para alcançar a produção delimitada.
A partir deste item, entendemos a 3º mudança levantada pela autora: a multifuncionaridade. Obsevou que as empresas não estão mais preocupadas em contratar funcionários com saberes específicos, mas encontrar trabalhadores que conseguem fazer de tudo um pouco. Ora, se a intensificação do trabalho já se evidencia através do controle mais rígido sobre a produção e qualidade, o crescimento de empregados com características multifuncionais só vem a acrescentar neste sentido. Com o funcionário “flexível”, os trabalhadores não tem mais suas funções delimitadas. Ao contrário, trabalham em tudo, de modo que todos são responsáveis pela produção como um todo, eliminando as divisões especializadas.
Somando-se a estes, a produção de forma terceirizada ainda se dá por meio de equipes. Esta é mais uma forma de retirar a individualidade do trabalho e repassa-la para um grupo de trabalhadores. As costureiras mais antigas, revela a pesquisa, disseram considerar o trabalho em 1995 mais fácil, pois se preocupavam apenas com o seu trabalho. Com os pedidos sendo feitos em metas, o controle sobre a qualidade sendo mais intenso, o empregado tendo que se preocupar com diversas outras atividades além daquela pela qual foi contratado, com cobranças sobre um grupo cada vez mais impessoais, forma-se a mistura do bolo “terceirização”.
A autora, portanto, nos traz algumas luzes a repeito do que este fenômeno trouxe aos trabalhadores daquela empresa. A proteção ao trabalhador, principio basilar do direito do trabalho, parece não ser a meta que vem atingindo a utilização de empresas interpostas. A utilização das oficinas de costura apenas demonstrou uma significativa intensificação do trabalho, e um aumento do desemprego (já que o quadro de funcionários caiu de 455 em 1993 para 79 e 15 facções de terceirizados em 2007) mostrando-se contraditória em relação aos fins do aludido principio.


[1] Pesquisa publicada na revista “Trabalho Necessário”, nº 10, ano 8 (2010), resultado da dissertação de Mestrado em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina de Vilma Marta Caleffi (disponível no site: http://www.uff.br/trabalhonecessario/)
[2]RABELO, Giani. Trabalho Arcaico no Moderno Mundo da Moda. Dissertação de Mestrado, UFSC,1997. Nesta pesquisa, o autor constatou quais eram as condições laborais e a forma de organização do trabalho de uma determinada empresa de costura, em 1995.