sábado, 9 de agosto de 2014

O vai e vem do direito à manifestação

August Comte
August Comte, apesar de ser um autor já não muito popular hoje em dia, parece não querer calar. No início do século XIX, lançou os fundamentos de uma “ciência nova”, um primeiro esforço que originaria tanto a sociologia quanto o processo de destacamento das Ciências Sociais em relação às Ciências Exatas. Sua tese em essência era a de que, assim como havia leis naturais universais – as Leis de Newton, por exemplo – haveria também outras leis análogas àquelas que supostamente regeriam a sociedade. Ao conjunto destas leis denominou-se “Física Social”, devendo o estudioso da sociedade ser capaz de “identificá-las” e “compreende-las”. Fruto do ideiario positivista da época, o qual Comte era entusiasta, hoje se entende claramente como absurdo em termos científicos se falar em “física” social, afinal, não se compreende seres humanos somente com cálculos e estatísticas.
A cerca de um ano até o presente, no Brasil temos assistido a certos movimentos de “ação” e “reação” sobretudo em relação à contração e expansão do direito de manifestação: uma interessante “física social” – num sentido metafórico, e não científico, do termo.
Em junho do ano passado, as manifestações que resultaram no não aumento das passagens no transporte público com certeza surpreenderam a muita gente. O impacto foi tamanho que possibilitou uma significativa articulação dos movimentos sociais agora em 2014 para a realização de manifestações críticas à Copa do Mundo. Assim, as Jornadas de Junho serviram como uma espécie de enorme “ação” da sociedade, que se mobilizou de forma inimaginável não apenas por conseguir a redução dos “20 centavos”, mas por ser canal de vazão de uma série de descontentamentos presentes na sociedade (saúde, educação, etc.).
Mas quando o “#nãovaiterCopa” começou a tomar corpo nos principais centros urbanos, uma “reação” não tardou a tomar corpo – e não poupou camburão e cacetete. A desmedidarepressão aos metroviários em greve na cidade de São Paulo e a prisão de ativistas no Rio de Janeiro em protestos durante a Copa do Mundo são os reflexos desta “onda”. Neste cenário, a prisão de Fabio Hideki e Rafael Lusvargh se mostra representativa de tal “reação” contra o despertar da população às ruas iniciado em Junho. Afirmo isso não apenas em razão do resultado das perícias do Institutato de Criminalística e do Gate[3] ter concluído que não haviam com os indiciados nenhum artefato que justificasse suas prisões, mas sobretudo, pelo conteúdo da sentença que não revogou prisão preventiva de Fábio. A justificativa da decisão do magistrado foi a de que: havia “depoimentos consistentes que apontam que em poder dos mesmos foram apreendidos artefatos explosivos/incendiários”, e Fábio era um Black Block, grupo esse que promove “arruaça, depredação, destruição e horror [...] agem contra tudo e todos”. Portanto, deveria permanecer encarcerado pois se libertos os Black Blocs “poderão certamente promover e participar de outros eventos como os tais, provocando todo o tipo de destruição e quiçá consequências mais grave como mortes”.
Trocando em miúdos: presumiu-se que Fabio era Black Block, e desta desdobrou-se outra presunção, a de que por ser Black Block o réu acabaria por voltar a depredar, destruir e talvez matar. Um pressuposto imaginário sobre outro, justificando a manutenção de uma pessoa na prisão. Tudo isso, por óbvio, em nome da Democracia.
Contudo, talvez o fato mais significativo – e alarmante – desta “reação” ao despertar das mobilizações seja a criação da 4ª subchefia do Comando de Operações  Terrestres (COTER), órgão este, de acordo com o Estadão, criado para “captar informações e monitorar movimentos  sociais com potencial para prejudicar o  deslocamento e atuação  de tropas federais convocadas para conter distúrbios e que atuam na vigilância de áreas pacificadas”. Ainda, informa o jornal que “Qualquer movimento social, de black blocs a trabalhadores sem-teto, pode ser objeto de acompanhamento pelo Exército [e que] em caso de ação para garantir a lei e ordem, o Exército precisa conhecer seu líder, para isolá-lo, e precisa conhecer o material que está sendo usado com as téticas de atuação”.
Protesto em 15 de maio (15M) na Avenida Paulista
Diante disso, algumas coisas podem ser observadas. A primeira delas é a espetacularização dos Black Blocs. Não é qualquer mascarado que joga pedra numa vidraça de banco que é um deles. Pessoalmente guardo várias críticas em relação a eles, mas fato é que está-se criando uma fantasiosa noção do que são e se desenhando sobre eles uma caricatura de inimigos a serem combatidos, uma espécie de distorção artificial da mídia semelhante aos antigos “subversivos” na Ditadura. Um segundo elemento que podemos observar é o claro recrudescimento da paranoia da segurança pública. Vemos aqui no Brasil uma suposta ameaça à – extremamente vaga – “ordem”, promovido por um também incipiente grupo “inimigo” (Black Blocs), resultando em absurdos episódios de autoritarismo, como a prisão de Fábio Hideki, prisão de advogados em manifestações, e mesmo a criação de um destacamento das Forças Armadas para “monitorar” movimentos sociais.
Parece que estamos, efetivamente, diante de uma ressaca. As manifestações de junho do ano passado jogaram a bola da democracia na parede, que rebateu e voltou forte e cheia de anti-democracia. Não me parece que estamos diante de uma volta à ditadura, mas se põe com máxima urgência a disputa do próprio conceito de democracia. Não devemos nunca esquecer que Ditadura Militar buscou não somente se envolver de “legalidade”, mas também se legitimar como protetora das Ordem e das instituições democráticas.
A metodologia de August Comte se mostrou falha como ciência. Entretanto, em certo sentido temos visto um jogo de “ações’ e “reações” no campo do direito de manifestação, fruto dos altos e baixos das constantes edificações que uma sociedade democrática por vezes exige. Ao mesmo tempo, essa “física” metafórica também nos põe em em alerta, pois a “reação” que vemos pode ainda estar em curso.