quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O plantio da mandioca no norte do Paraná

            Como dizia Vinicius de Moraes em sua canção “Cotidiano nº 2”, “Aos sábados em casa tomo um porre e sonho soluções fenomenais, mas quando o sono vem e a noite morre o dia conta histórias sempre iguais”. Infelizmente, nossos dias ainda contam muitas histórias iguais. É comum que algumas políticas públicas que busquem soluções para determinados impasses sociais sejam contornadas e criem novas situações para serem resolvidas. Quem assistiu o filme “Tropa de Elite 2”, e posteriormente acompanhou a irritante cobertura que foi dada à ocupação do Morro do Alemão por determinada rede de televisão, compreende onde quero chegar. Por mais que a “propaganda” midiática da ocupação de favelas tenha mostrado-se como uma “salvação”, um passo indispensável para o combate ao trafico, a mera exterminação do traficante não representa nenhum arranhão no problema. Ineficiência do Estado “concertada” com demagogo corretivo. Esse foi o recado do diretor José Padilha. Em muitos casos os próprios policiais criam milícias e dominam o trafico antes dominado pelos traficantes. Matar todos os traficantes, por vezes, resulta apenas em outro problema.
            Críticas a parte à ocupação do Morro do Alemão, sabemos que nem sempre que o Estado procura harmonizar algum desequilíbrio social, gera novos problemas. Algumas soluções que encontram guarida no seio institucional tornam o agir estatal de grande valia para a população. Foi assim que, em consonância com seus deveres institucionais, a Procuradoria do Trabalho no Município de Maringá (PTM) buscou um diálogo com diversas associações empresariais e sindicatos da categoria profissional relacionados à cultura da mandioca para impedir irregularidades no trabalho neste setor.
            O cultivo da mandioca, sobretudo no Paraná, caracteriza-se em sua grande maioria por pequenos agricultores, normalmente arrendatários. O que poucos sabem é que este setor tem sido extremamente atingido pelo problema da informalidade. Após diversas fiscalizações realizadas em municípios no noroeste paranaense, os procuradores do trabalho e auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) depararam-se com níveis alarmantes de informalidade e precariedade das condições de trabalho no plantio e colheita da mandioca, em farinheiras e fecularias. Além da falta de registro em carteira, foram verificados diversos casos de absoluto descumprimento de normas de saúde e segurança no trabalho, transportes de trabalhadores inseguros (alguns transportando combustíveis com os trabalhadores), nenhum fornecimento de Equipamento de Proteção Individual (EPI), intermediação de mão de obra por meio de “gatos”, e até uma propriedade onde o pessoal da colheita retirava da terra a mandioca em meio à capim pegando fogo (isso mesmo: arrancavam as raízes com suas próprias mãos enquanto o capim pegava fogo no solo).
O primeiro passo dado consistiu em agendar-se diversas audiências e reuniões com representantes das indústrias, das farinheiras, fecularias, agricultores e sindicatos do ramo, com intuito de dialogar e buscar soluções junto a estes setores para a efetiva regularização da atual situação dos obreiros rurais, bem como a responsabilização das indústrias e farinheiras, para que não comprem matérias-primas fruto de descumprimento de normas de natureza trabalhista e de lesão de direitos fundamentais dos trabalhadores.
Seminário da Cadeia Produtiva da Mandioca realizado em Paranavaí, procurou ouvir opinião dos produtores de mandioca acerca da formalização em carteira de trabalho. Fonte: http://www.fetaep.org.br

Tendo como premissas que contratos e condições de trabalho regulares, agricultores conscientes, e a observância da boa procedência da matéria-prima pelas indústrias sejam uma realidade, o MPT em conjunto com a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Paraná (FETAEP) estão empenhados em um projeto de fiscalização móvel para que as propriedades produtoras da mandioca sejam devidamente fiscalizadas e adequadas às normas trabalhistas. Trata-se de uma força-tarefa com o intuito de fazer valer o ordenamento jurídico trabalhista a este tão castigado setor.
            Importante salientar-se que por meio deste projeto o Ministério Público do Trabalho tem buscado não apenas zelar pelos interesses sociais e individuais indisponíveis dos trabalhadores rurais da lavoura da mandioca, mas também zelar pela própria ordem jurídica, como prevê o art. 127 da Constituição Federal. Isto porque nosso ordenamento jurídico estabelece os institutos da função social do contrato e da responsabilidade social da empresa devem ser observados pelo empresariado, e na cultura da mandioca não pode ser de outra maneira.
            Por fim, saliente-se que política pública nenhuma é ou será capaz de solucionar problemas sociais por completo. Talvez em uma sociedade ideal, como em Castália[1], as mazelas sociais pudessem ser solucionadas em sua essência através da “burocracia estatal” (nos termos de Max Weber). Como vivemos em uma sociedade de homens, e não de anjos ou de sábios iluminados, devemos fazer consigam, pelo menos, alcançar direitos fundamentais para os cidadãos. Iniciativas como esta, direcionadas aos trabalhadores da mandioca, só tendem a acrescentar à sociedade. Sabemos que existem muitos conflitos no âmbito do trabalho especialmente na zona rural, onde prevalecem a informalidade e a desinformação em muitos casos (não restringindo-se apenas ao cultivo da mandioca). Entretanto, não se pode ficar paralisado perante a grandeza do problema, e assim tem trabalhado o MPT, para que pelo menos, esses trabalhadores não tenham soluções apenas em “sonhos” ou “porres”.


[1] “Castália” é uma província fictícia criada pelo escritor alemão Hermann Hesse, no livro “O Jogo das Contas de Vidro”. Trata-se de uma espécie de “república de acadêmicos” extremamente organizada e hierarquizada, um ambiente onde imperava a racionalidade e as pessoas possuíam um amor imanente à sabedoria e ao conhecimento. A única ocupação de seus habitantes é o profundo estudo das mais diversas disciplinas, sobretudo matemática e música. Também denominada “Província Pedagógica” é um lar de intelectuais que não ocupam suas vidas com outra coisa que não seja o profundo estudo dos temas que escolheram.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

“Estado Amplo” ou “Estado Democrático de Direito”?


A questão da desocupação do Pinheirinho, que assolou os jornais e dividiu opiniões à algumas semanas, me trouxe reflexões simples – mas não simplórias – a respeito do nosso Brasil. A fala do defensor público Jairo Salvador durante audiência pública realizada na Assembleia Legislativa de São Paulo, em especial, mostrou como as relações jurídicas se fragilizam, se corrompem, perante determinados interesses econômicos. A questão não é pueril. Não estamos falando que o Estado deveria ser perfeito, ou que as pessoas deveriam viver em plena harmonia, pois sabemos que somos humanos e imperfeitos. Entretanto, se desnudou como é frágil e demagógico o discurso do Estado Democrático de Direito – principal pilar que legitima o direito em todas as suas frentes – quando temos interesses (político e econômicos) de grandes capitalistas frente a direitos “dos de baixo”, segundo Edward Thompson.
Existem algumas questões gritantes verificadas neste caso. Passemos a questões eminentemente jurídicas. Em primeira análise, em nenhum momento se levou em consideração o art. 6º da Constituição Federal[1], ou a função social da propriedade e o art. 5ª da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[2] (antiga LICC). Mas se foram desalojadas, tudo bem: o Estado arcou com o não cumprimento do direito à moradia daquelas pessoas, já que deu causa à lesão de seus direitos por meio da liminar de reintegração de posse, garantindo uma indenização pelo feito? Mas digamos que esses questionamentos estejam errados. Como se fundamenta processualmente a liminar de reintegração de posse sendo que já havia sido anteriormente deferida pela 16ª Câmara do tribunal de Justiça de São Paulo (revertendo o posicionamento do juízo a quo) e declarada nula pelo STJ em 2010? Como entender que não houve da eliminação da urgência, ou o famoso periculum in mora como gostam os juristas, que embasa a concessão de uma liminar? Não suficiente, segundo o depoimento do defensor público, a prefeitura demoliu às pressas as casas do Pinheirinho ciente de que a ação demolitória, por ela ajuizada para demoli-las, havia sido indeferida pelo juiz Silvio Pinheiro da 1ª Vara da Fazenda Pública. Apenas breves reflexões, sigamos em frente[3].
Máquinas trabalham na demolição dos barracos do Pinheirinho após reintegração de posse no interior de SP. Fonte: www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1038753-operacao-de-reintegracao-no-interior-de-sp-deve-terminar-amanha.shtml
Pensando a respeito destes casos, comecei a refletir no significado deste tão pomposo “Direito” que nós juristas temos por hábito complementar à expressão “Estado Democrático de...”. Qual direito foi respeitado no caso do Pinheirinho? Algum tempo após as leituras acerca do caso, deparei-me com um autor que lançou-me algumas luzes intelectuais. Tratou-se da teoria de Estado proposto pelo professor português João Bernardo. Embora qualquer modelo de Estado que se apresente seja passível de crítica, e isto deve ser bem ressaltado, Bernardo expôs o modelo do “Estado Amplo”, que traz diversas correlações com estes casos que comentamos.
Pode-se definir, genericamente, Estado Amplo como

um mecanismo de poder utilizado pelos capitalistas para controlar os trabalhadores e garantir a disputa empresarial pela maior extração de mais-valia. Na competição interempresarial, o Estado – mais do que um mero agente regulador da concorrência – é a parte interessada que toma partido e atua como promotor das chamadas CGP (Condições Gerais de Produção). As CGP compreendem todos os recursos destinados à realização da produção, englobando a estrutura e o funcionamento dos estabelecimentos de ensino, o acesso da população à medicina, à saúde, etc.” (SOBRINHO, 2006, p.85)[4].

Os não-marxistas ortodoxos que me desculpem, mas nem tudo que pensou o velho Marx ficou no século XIX. Neste modelo de Estado proposto pelo autor lusitano, os poderes institucionais (legislativo, executivo e judiciário) formam um conjunto denominado “Estado Restrito”. Este, por sua vez, é o responsável pela feitura das leis e regulamentação da sociedade em geral, incluídos nestes processos a criação das “regras do jogo” para o trabalho. O “Estado Amplo”, todavia, constitui-se no grupo de grandes empresas que influenciam a ala burocrática estatal (Estado Restrito), transformando-se em sua longa manus o outro Estado. O autor sumariza estes elementos:

O Estado Restrito é o aparelho político clássico, combinado com os poderes executivo, legislativo e judiciário (...) O Estado Amplo resulta da autoridade que cada patrão exerce no interior da sua própria empresa. Resulta ainda da hegemonia que as empresas detêm sobre a sociedade em redor. O Estado Amplo é constituído pelas empresas enquanto aparelho de poder” (BERNARDO, 1996, p.6)[5].

A principal característica deste modelo é que ele supera a concepção de Estado apenas como “sociedade política”. A função do Estado seria a de contribuir para a consolidação dos interesses dos grandes capitalistas, isto é, o exercício do poder passaria a ser ferramenta para se promover um local ideal para que estas empresas possam explorar suas atividades. A influência do Estado Amplo sob o Estado Restrito teria o condão de fazer com que este último se restringisse à condição de “grande fiador dos negócios do setor privado, transferindo a regulação para as agências privadas e garantindo a cláusula de sucesso aos investidores” (SOBRINHO, 2006, p. 86). As instituições garantiriam as leis e gerenciariam o exercício do poder na sociedade, mas o Estado Amplo quem “dá as cartas”. O que se teria, em suma, seria uma falsa soberania, um falacioso discurso democrático onde, na realidade, as elites utilizar-se-iam do Direito da forma que melhor lhes aprouvesse política e economicamente. Os vínculos políticos transmutar-se-iam em compromissos com grandes capitalistas. Como explicita Palmeira,

O conceito do Estado Restrito serve para reconhecer o aparato e a força repressiva do Estado Amplo. É através dessa coerção que o Estado busca assegurar a execução dos contratos que disciplinam a acumulação e a ordem necessária à reprodução do capital (Idem, p. 87).

Os Estados Unidos da América são outro exemplo onde poderíamos atribuir este modelo. Berço do neoliberalismo e da Escola de Chicago, o país propagou o ideário do livre mercado para todo o mundo. Eles não estavam de brincadeira. Em 20 de janeiro de 1981, declarou o presidente Ronald Regan: “government is not the solution to our problems; government is the problem[6]”, em clara alusão a derrocada do antigo Welfare State e da necessidade da economia livrar-se das intervenções estatais. A solução era, em termos gerais, o fim das barreiras comerciais. Entretanto, o que assistimos no ano de 2008 foi uma intensa crise financeira causada pela desmedida especulação imobiliária naquele país que afetou todo o Globo e foi salva... pelo governo. A quase irresponsável concessão de crédito para a aquisição de casas com intuito de aquecer o mercado gerou uma inadimplência tamanha que muitas financeiras quebraram, mas quem acertou as contas, no final, foi (para utilizar o termo de Bernardo) o Estado Restrito.
Confesso que à primeira vista, este conceito pareceu-me um tanto extremado. Embora saiba que conceito algum de Estado será suficiente para descrevê-lo em sua totalidade, o caso do Pinheirinho nos coloca em xeque.  A questão mor que se coloca é: se nosso Estado, além de “Democrático”, é “de Direito”, até que ponto se extende esse direito? Em outras palavras: qual o limite dos interesses que o ordenamento jurídico alcança e sobrepõem-se? Embora não advogue cegamente a tese do Estado Amplo, inegável é a flagrante demagogia do modelo estatal atual, que não consegue cumprir nem aquilo que se propõe a minimamente ser. Os interesses da “massa falida” num terreno improdutivo, à muito tempo abandonado, suplantou os direitos constitucionais, processuais, etc. de todas as famílias expulsas à bala pela polícia. Apesar disso, nosso “Estado Democrático de Direito” ainda serve de base para a legitimação do próprio ordenamento jurídico vigente e para diversos discursos de juristas e falsos entusiastas.
Talvez estas reflexões já não se mostrem mais tão importantes para boa parte dos leitores, principalmente a respeito do caso do Pinheirinho, por já estar um tanto “batido” pela mídia. Entretanto, para aquelas famílias, esta questão ainda está muito presente. Por isso mesmo, não podemos nos esquecer o que aconteceu e simplesmente fechar os olhos a partir do momento em que os fatos saem da mídia. Pierre Bourdieu escreveu, a respeito da mídia direcionada às grandes massas, que “Toda linguagem que é produto do compromisso com as censuras, internas e externas, exerce um efeito de imposição, imposição do impensado que desestimula o pensamento[7]. Não sei se estamos sendo enganados por alguns que querem que acreditemos teologicamente que existe um Estado Democrático de Direito, ou nós que muitas vezes deixamo-nos seduzir pelo discurso. De qualquer maneira, encerro o texto com uma fala do defensor público citado, para que reflitamos se não estamos vivendo, de fato, num “Estado Amplo”:

Para quem conhece São José dos Campos, sua formação, a elite que domina a cidade, dá pra entender o que aconteceu. Porque o Pinheirinho é só mais um capítulo de extermínio da pobreza numa cidade que quer se vender como uma cidade perfeita, sem problemas sociais, onde esconde a pobreza, mata a pobreza, onde elimina físicamente a pobreza, para que a pobreza não apareça e a cidade seja vendida como a cidade perfeita (...) a opção política da cidade, dos seus governantes, é para a exclusão e exterminação da pobreza exterminando o pobre, e não elevando suas condições sociais”.

Reintegração de posse. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1038753-operacao-de-reintegracao-no-interior-de-sp-deve-terminar-amanha.shtml

[1] Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
[2] Art. 5o  Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
[3] Para quem interessar-se em aprofundar os conhecimentos a respeito dos aspectos jurídicos do Pinheirinho, ver o texto do juiz do trabalho Jorge Luiz Souto Maior em http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI149026,31047-O+caso+Pinheirinho+um+desafio+a+cultura+nacional.
[4] SOBRINHO, Zéu Palmeira. Reestruturação Produtiva e Terceirização: o caso dos trabalhadores das empresas contratadas pela Petrobrás no RN. Tese (Doutorado), Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA), Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2006.
[5] BERNARDO, João. Reestruturação Produtiva e o Futuro do Trabalho. 1996 17p. [Texto apresentado por ocasião de curso ministrado junto ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFRN]. Natal: PPGCS/UFRN, 1996.
[6]Em uma tradução livre, “o governo não é a solução para nossos problemas, o governo é o problema”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=XObcP69dhCg&feature=related
[7] BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983, p. 8. 

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Olhos clínicos

 Astolfo (Sr. De Sainot) passava por sábio de primeira ordem. Ignorante como uma carpa, nem por isso deixava de escrever os verbetes “açúcar” e “aguardente” de um dicionário de agricultura. (...) Se alguém ia vê-lo, deixava-se surpreender misturando papéis, procurando uma nota perdida, ou aparando a pena; empregava, porém, em frioleiras todo o tempo que ficava em seu gabinete: lia demoradamente o jornal, esculpia a pasta ou folheava Cícero para tomar ao acaso uma frase ou passagens cujo sentido se pudesse aplicar aos acontecimentos do dia. Depois, à noite, esforçava-se para levar a conversa a um assunto que lhe permitisse dizer: “Há em Cícero uma ágina que parece ter sido escrita para o que se passa em nossos dias”. Recitava então sua passagem com grande assombro dos ouvintes, que diziam entre eles: Verdadeiramente, Astolfo é um poço de sabedoria”.
Ilusões Perdidas, Honoré de Balzac

Um dos maiores problemas que submetem-se os “críticos”, estes seres que enfrentam ideias consolidadas ou propõem novas possibilidades para além lugar comum, é que normalmente tem o hábito de não se contentarem com paliativos. Sim, buscam atingir a essência das coisas, e assim procedem para curar o mal ao invés de desperdiçarem suas vidas com remédios para sintomas (os quais já bastam para que hipócritas ou menos favorecidos intelectualmente possam deitar-se à noite em seus travesseiros com serenidade).
Deve haver algo de belo nisso... Gastar o tempo e esforços em buscas cujos resultados dificilmente alcançarão plenamente, apenas para não desgastar a consciência. Abrem mão de compartilhar opiniões majoritárias, de apadrinhamentos vantajosos, criam descensos, muitas vezes não são bem vistos na sociedade ou até mesmo tratados como loucos ou malfeitores.
Existe uma grande diferença entre aliviar a dor e sanar a doença, e os críticos normalmente reconhecem isso. Entretanto, o problema não está propriamente em aliviar as dores. Quem já esteve em contato com pacientes de câncer sabe que é importante a busca da cura, mas que ela somente não configura um tratamento adequado para o doente. Para quem a sente, aliviar a dor não é simplesmente um luxo.
O problema que falávamos está intimamente ligado aos olhos cínicos que enxergam neste alívio o amparo suficiente; em defesas bem delineadas de ações que não resolvem aquilo à que foram criadas para resolver. Àqueles que, de acordo com a parábola do semeador[1], estão satisfeitos em jogar sua semente sobre a terra cheia de espinhos. A planta nascerá e crescerá, num primeiro momento, mas logo sucumbirá em razão dos problemas mais sérios que já existiam. Se o semeador se preocupar apenas em semear, jogar a semente na terra, o efeito de nascer e crescer pode não acontecer. Aqueles que têm o costume, porém, de analisar as coisas a seu redor com olhos clínicos preocupam-se com as dores, mas jamais perdem de vista o verdadeiro cerne do mal.
Ao que parece, infelizmente, isso faz parte da própria índole humana. Recordo das sabias palavras do Sr. Gruffydd, pastor anglicano personagem do romance Como Era Verde Meu Vale, de Richard Llewellyn: “Ah meu Deus! Pensei, quando era jovem, que conquistaria o mundo com a verdade. Pensei que conduziria em exército maior do que jamais sonhou Alexandre, não para conquistar nações, mas para libertar a humanidade. Com a verdade. Com o som áureo do Verbo. Mas somente poucos ouviram a trombeta. Somente alguns compreenderam. O resto vestiu-se de preto e sentou-se na capela”.


[1] Mateus, 13:3-9. b