Alberto e Estela. |
Nesta etapa de contagem regressiva para a Copa do Mundo, vivemos num momento de grandes movimentações na sociedade. Não apenas o Estado, que já tratou de cuidar bem da segurança para a Copa, mas sobretudo, a própria população tem se organizado de diferentes maneiras, como a campanha do “não vai ter Copa”, as greves de diversas categorias, as reivindicações dos membros do MTST, protestos de indígenas, entre outros. Por outro lado, as críticas também não tardaram a aparecer. Para uns, os manifestantes estariam ferindo o direito de ir e vir dos cidadãos e prejudicando “a sociedade”, para outros, ganham destaque dramas individuais de pessoas que dependiam de condução pública e foram prejudicados pelos motoristas grevistas. Enfim, o Estado Democrático de Direito, esse o grande garantidor universal das garantias individuais, estaria sendo desmontado pelas manifestações que temos assistido.
Esta pequena introdução nos mostra a grandiosidade artística que é o filme “Heli”, do diretor Amat Escalente. Heli é o nome também da personagem principal da obra, um operário mexicano que trabalha em uma montadora de veículos automotores. Ao vê-lo no cinema, apesar do filme focalizar na questão do tráfico de drogas no México, confesso que não pude deixar de enxergar diversos nexos com nosso contexto. Enquanto alguns estão temerosos quanto aos ataques ao direito de ir e vir (e deixo claro que penso que deve, por obvio, ser garantido e respeitado), o filme chama a atenção para elementos socialmente mais graves. Aliás, muitos aspectos relevantes podem ser levantados neste filme, como a questão da mulher na sociedade (retratada no filme, como a dona de casa submissa ao homem, reclusa aos afazeres domésticos), os problemas de uma vida conjugal em meio a precariedade social (lembrando um pouco Maria e Tião, em “Eles não Usam Black Tie”). Mas percebi dois aspectos que ganham certo relevo.
O primeiro deles são os retratos do trabalho. Fica evidente como a maquinaria, as novas tecnologias e a reengenharia industrial não tem outro fim senão aumentar a produção de peças de automóveis em menor tempo. A cena em que a personagem Heli não executa direito uma ação com a máquina e esta dispara uma sirene incessante acusando o erro é, de certa maneira, simbólica neste sentido. Desde os anos 1980 se vem afirmando que o trabalho não tem mais a mesma relevância social que no século XX, que não é mais uma categoria determinante, sociedade 20 por 80, enfim, a proclamação do “fim do proletariado” (como queria André Gorz). A fábrica onde Heli trabalha só mostra como a tecnologia só nasce para dinamizar o trabalho do homem, sem substitui-lo completamente mas diminuindo a necessidade do ser humano na linha de produção. Este fenômeno leva, entre outros, ao aumento da população sem emprego, substituída pela automação, que também integra o atual exército industrial de reserva.
É ainda interessante observar que neste terreno os trabalhadores muitas vezes se encontram sem outras opções de sobrevivência. Isto leva a busca por alternativas como pequenos comércios, “bicos”, e também, a cooptação ao tráfico de drogas. Neste contexto surge Alberto (Beto). Nitidamente um rapaz pobre, tentando ainda ingressar no mercado de trabalho (tinha 17 anos), ao entrar para a polícia local acaba se envolvendo com o tráfico local comandado por milicianos. Ocorre que ele resolve se casar com sua namorada (Estela, irmã mais nova de Heli), e na expectativa de fazer algum dinheiro, furta 2 pacotes de cocaína dos traficantes.
Percebemos então como o filme apresenta a pobreza e a falta de perspectivas de inserção no mercado de trabalho, isto é, a inércia na situação de exército de reserva sem maiores perspectivas de mudança futura de Alberto, enquanto uma mazela social, um poderoso catalizador na cooptação de jovens ao tráfico de drogas.
Heli na mira da arma de um miliciano |
Heli, descobrindo que haviam sido escondidos na caixa d’água de sua casa, livra-se da droga, jogando-a num poço. Como traficantes e polícia estão no mesmo negócio, são agentes policiais fortemente armados que vão até a casa do operário para cobrar o material roubado por Beto. Arrombam a porta da casa, os milicianos matam o pai de Heli, sequestram Estela e entregam Heli e Beto aos traficantes para serem torturados. A história não acaba por ai. Após voltar do cativeiro e dar seu depoimento a polícia, Heli percebe a extrema desconfiança de que ele mesmo e seu pai fizessem parte do movimento, o que fez com que omitisse alguns elementos dos fatos que levaram ao crime. Passado algum tempo, enquanto o jornal noticiava a decapitação de traficantes locais, resolve contar toda a história a polícia: que Alberto era namorado de sua irmã e havia escondido a cocaína em sua casa.
É o momento que Heli fica sabendo que seu “processo” já havia sido arquivado na polícia. O filme dá relevo, então, a segunda faceta da realidade que chamou a atenção. A partir deste momento, retrata-se uma efetividade do Estado Democrático de Direito que muitos talvez desconheçam ou cinicamente ignorem. Era mais um caso de morte e desaparecimento em razão do tráfico, e mesmo tendo complementado a história para que a polícia realizasse as investigações com zelo, sua irmã não foi localizada. “Heli”, ao mostrar este cotidiano de violência e pobreza em uma pequena cidade do México, alerta para o fato de que estas questões não são pontuais. Diante do fato, se real fosse, poderíamos culpar a polícia (ou o judiciário) que tem muitos processos e não dá conta de todos eles; culpar os traficantes, que são bandidos violentos sem respeito nenhum ao ser humano; até culpar o próprio governo, que no início do filme aparece realizando uma cerimonia oficial de queimada de drogas apreendidas pela polícia, e é ineficiente (ou conivente) para combater as milícias.
Em certa medida, estes apontamentos não deixam de ter sua razão. Todavia, não são mais que visões fracionadas da realidade, manifestações esparsas de uma totalidade com a qual não dialogam, como se – e este é o ponto aqui – a solução para todo esse caos social estivesse em cada um desses “culpados”. Não é a toa que Boaventura de Sousa Santos, ao analisar movimentos sociais e o direito, observa que existem 3 tipos de sociedade, de acordo com o nível de proximidade com o Estado. Nos interessa aqui o que ele chama “sociedade civil incivil”. São cidadãos comuns, como qualquer outro dentro de um Estado-nação moderno, só que, na prática, vivem totalmente à margem do Contrato Social. Em outros termos, são pessoas que, como Heli, não tem o devido acesso a provisões do Estado como pessoas da elite, que não tem a mesma prestação jurisdicional, que não tem seu direito de asilo em casa respeitado, que não tem direito a moradia e transporte publico (Heli sempre vai de bicicleta para o trabalho, seu pai ia a pé) respeitados, entre tantos outros. A parte da sociedade que o filme retrata ludicamente, vive uma situação estrutural de “cidadania diferenciada”, na prática, num verdadeiro estado de não-cidadãos.
Trata-se de um filme muito chocante, especialmente pelo nível de violência que apresenta. Mas a violência não é nem gratuita nem sensacionalista, ao contrário, visa retratar a violência cruel do dia-a-dia destas pessoas, colocando o expectador tão próximo ao choque e ao sentimento de horror tão realista que provocaria inveja em De Sica. “Heli” nos faz pensar que certas polarizações que temos visto, como “eu defendo a população não ser prejudicada, e vocês, motoristas, defendem o direito de greve” ou “eu defendo o direito de ir e vir, vocês, manifestantes, o violam”, são enormes paradoxos; são a culpabilização dos sintomas quando se deve atacar a doença, pois problemas sociais – do tráfico de drogas no México a especulação imobiliária e desapropriações para a Copa – são mazelas estruturais oriundas do modo de produção capitalista.
Heli, sendo torturado, após ter sido entregue pela polícia aos traficantes |
Portanto, fica uma importante reflexão para enxergarmos o próprio Brasil que vemos nos jornais e nas ruas. Por obvio, não se trata de atribuir todo e qualquer problema da vida ao capitalismo de maneira ingênua, mas sim, compreender que mazelas sociais não são problemas pontuais mas consequências estruturais do próprio modelo capitalista. No entanto, o que não se pode negar é que “Heli” traz correspondências sem par para o nosso contexto brasileiro de mobilizações pré-Copa. Como diz Souto Maior ao comentar a obra “Violência” de Zizek, “Acusam as manifestações populares de violentas. Mas são, em geral, reações a violências constantemente sofridas que não se apresentam como tal. O problema é que a reação da revolta, materializada em ato coletivo, é muito mais facilmente visualizada. Essa violência concreta acaba sendo o argumento conveniente para a repressão institucionalizada, fazendo com que as vítimas das violências reais sejam novamente violentadas” (grifos meus)