sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Olhos clínicos

 Astolfo (Sr. De Sainot) passava por sábio de primeira ordem. Ignorante como uma carpa, nem por isso deixava de escrever os verbetes “açúcar” e “aguardente” de um dicionário de agricultura. (...) Se alguém ia vê-lo, deixava-se surpreender misturando papéis, procurando uma nota perdida, ou aparando a pena; empregava, porém, em frioleiras todo o tempo que ficava em seu gabinete: lia demoradamente o jornal, esculpia a pasta ou folheava Cícero para tomar ao acaso uma frase ou passagens cujo sentido se pudesse aplicar aos acontecimentos do dia. Depois, à noite, esforçava-se para levar a conversa a um assunto que lhe permitisse dizer: “Há em Cícero uma ágina que parece ter sido escrita para o que se passa em nossos dias”. Recitava então sua passagem com grande assombro dos ouvintes, que diziam entre eles: Verdadeiramente, Astolfo é um poço de sabedoria”.
Ilusões Perdidas, Honoré de Balzac

Um dos maiores problemas que submetem-se os “críticos”, estes seres que enfrentam ideias consolidadas ou propõem novas possibilidades para além lugar comum, é que normalmente tem o hábito de não se contentarem com paliativos. Sim, buscam atingir a essência das coisas, e assim procedem para curar o mal ao invés de desperdiçarem suas vidas com remédios para sintomas (os quais já bastam para que hipócritas ou menos favorecidos intelectualmente possam deitar-se à noite em seus travesseiros com serenidade).
Deve haver algo de belo nisso... Gastar o tempo e esforços em buscas cujos resultados dificilmente alcançarão plenamente, apenas para não desgastar a consciência. Abrem mão de compartilhar opiniões majoritárias, de apadrinhamentos vantajosos, criam descensos, muitas vezes não são bem vistos na sociedade ou até mesmo tratados como loucos ou malfeitores.
Existe uma grande diferença entre aliviar a dor e sanar a doença, e os críticos normalmente reconhecem isso. Entretanto, o problema não está propriamente em aliviar as dores. Quem já esteve em contato com pacientes de câncer sabe que é importante a busca da cura, mas que ela somente não configura um tratamento adequado para o doente. Para quem a sente, aliviar a dor não é simplesmente um luxo.
O problema que falávamos está intimamente ligado aos olhos cínicos que enxergam neste alívio o amparo suficiente; em defesas bem delineadas de ações que não resolvem aquilo à que foram criadas para resolver. Àqueles que, de acordo com a parábola do semeador[1], estão satisfeitos em jogar sua semente sobre a terra cheia de espinhos. A planta nascerá e crescerá, num primeiro momento, mas logo sucumbirá em razão dos problemas mais sérios que já existiam. Se o semeador se preocupar apenas em semear, jogar a semente na terra, o efeito de nascer e crescer pode não acontecer. Aqueles que têm o costume, porém, de analisar as coisas a seu redor com olhos clínicos preocupam-se com as dores, mas jamais perdem de vista o verdadeiro cerne do mal.
Ao que parece, infelizmente, isso faz parte da própria índole humana. Recordo das sabias palavras do Sr. Gruffydd, pastor anglicano personagem do romance Como Era Verde Meu Vale, de Richard Llewellyn: “Ah meu Deus! Pensei, quando era jovem, que conquistaria o mundo com a verdade. Pensei que conduziria em exército maior do que jamais sonhou Alexandre, não para conquistar nações, mas para libertar a humanidade. Com a verdade. Com o som áureo do Verbo. Mas somente poucos ouviram a trombeta. Somente alguns compreenderam. O resto vestiu-se de preto e sentou-se na capela”.


[1] Mateus, 13:3-9. b

Nenhum comentário:

Postar um comentário