sábado, 4 de agosto de 2012

A paralisação dos caminhoneiros



Olimpíadas, campanhas políticas, julgamento do “Mensalão”, volta de Demóstenes Torres para o Ministério Público. Para aqueles que comigo compartilham os ares maringaenses na Zona 07 todos os dias, até mesmo esse “vai-não-vai” da greve na Universidade Estadual de Maringá está sendo motivo suficiente para apagar a manifestação dos caminhoneiros finda neste dia 31/07. Como sempre, a grande mídia veiculou a matéria de maneira rápida, em pequenas notas ou reportagens, com aquele enfoque imparcial que dá o toque especial da mídia brasileira. Com efeito, uma coisa é fato: alguns dias que os caminhoneiros ficaram parados em diversos Estados foi suficiente, ao que parece, para aumentar significativamenteo preço dos alimentos.  Isto mostra uma daquelas faces do trabalho que não costumamos ver com muita frequência, mas que são essenciais para a manutenção do nosso cotidiano.
Confesso que, em um primeiro momento, fiquei espantado ao ler que “caminhoneiros protestam contra a nova regra que obriga o motorista a ter um descanso de 11 horas entre duas jornadas de trabalho, uma hora de almoço por dia e repouso de 30 minutos a cada quatro horas rodadas[1]. No mínimo, pareceu-me um apelo paradoxal por parte dos trabalhadores, para não dizer irracional: não queremos descanso, não queremos jornada regular, queremos rodar Brasil a fora sem nenhum controle para nossa saúde.
Após ter contato com algumas ações de motoristas de ônibus e caminhoneiros tentando pleitear direitos trabalhistas – incluindo jornada de trabalho e horas extras – considero um avanço para a categoria a lei 12.619/2012. Afinal de contas, infelizmente, é notório o fato de que a utilização de rebite e cocaína pelos motoristas rodoviários é intensa para que deem conta de cumprir seus prazos. Como seria possível, portanto, que o Movimento União Brasil Caminhoneiro (MUBC) se mobilizasse, então, pela manutenção deste quadro? A primeira notícia que li, ao ficar sabendo da manifestação na quarta-feira, foi a desaprovação dos bloqueios por parte da Unicam (União Nacional dos Caminhoneiros), associação de caminhoneiros autônomos e microempresários. Até mesmo microempresários, estes que talvez pudessem ter algo contra a regulamentação de jornada e intervalos, manifestaram-se a favor, e a MUBC era contraria. Não fazia sentido.
Entretanto, a ata de reunião celebrada entre governo, MPT e caminhoneiros manifestantes pareceu trazer algumas luzes ao assunto que o Jornal Nacional omitiu. Ao contrário do que noticiou-se, a MUBC não estava contra a regulamentação. Ao contrário: reconheceram “que a Lei 12.619/2012 representa um importante avanço na regulamentação do setor, disciplinando a jornada de trabalho, o tempo de direção e descanso”. E nada mais. O que a lei não previu, por exemplo, é que quando chega o momento de descansar o caminhoneiro não pode parar na beira da estrada, pois é uma conduta passível de multa. Mas suponhamos que este motorista tenha a felicidade de coincidir o período de descanso com a chegada a um posto de gasolina. Muitos deles não costumam ser locais apropriados para descansos, além de oferecerem riscos de saque da carga. Pátios de estacionamentos também não são muito frequentes nas rodovias, e a lei não trouxe nenhuma previsão acerca deles. Estas são apenas algumas considerações, cuja compreensão depende do contato frequente com a lida na estrada, o que a meu ver, não parece ser a rotina dos membros do Congresso. O segundo problema diz respeito a própria desunião da classe. Em um momento como esse, de singular avanço para os direitos da categoria, MUBC e Unicam (que reúne também caminhoneiros autônomos) não somam forças para levar o governo à negociação direta com os reais destinatários da norma.

Representantes da classe dos caminhoneiros, Ministério Público do Trabalho e ministro dos Transportes, em reunião.

Por derradeiro, talvez até decorrência da situação anterior, a falta de participação do “público alvo” da lei em sua elaboração. As questões levadas ao Ministério dos Transportes deixam claro que as frondosas estruturas do burocrático processo legislativo, que dão sustentação ao nosso Estado, são cheias de legalidade e vazias de direito. O poder legislativo, longe do cotidiano das estradas, fez a lei e ponto. Os parlamentares não tem condições de conviver com as experiências do dia-a-dia que determinam os rumos do ordenamento da sociedade. Concedeu a “Lei Áurea” do transporte rodoviário: concedeu a abolição das jornadas excessivas sem dar o devido suporte à empresas e caminhoneiros para cumpri-la.
Gostaria de salientar ao leitor que, assim como a MUBC e Unicam, também vejo a Lei 12.619/2012 como um progresso para os trabalhadores do transporte de cargas e pessoas. Entretanto, esta situação serve para nos aclarar a razão do “homem do povo” desconfiar do direito, como escreveu Paolo Grossi[2]: “Não está errado o homem do povo, mesmo em nossos dias, que traz em si ainda frescos os cromossomos do proletário da idade burguesa quando desconfia do direito: o percebe como uma coisa que lhe é completamente estranha, que cai do alto sobre sua cabeça, como uma telha do telhado, confeccionado nos mistérios dos palácios do poder  e evocando  sempre  os espectros desagradáveis  da autoridade  sancionadora, o juiz ou o  funcionário  de polícia” (p. 56)
Como os caminhoneiros não tiveram a oportunidade de participação, a sua única voz (se é que assim se pode dizer) no debate consistiu nesse transtorno nas estradas do Brasil. Aliás, foi o meio mais eficaz que a própria democracia lhes renegou para que as suas necessidades de profissão fossem ouvidas pelo governo, tamanha a distancia entre as boleias e aqueles que os representam nas cúpulas legislativas. Enquanto o caráter político da sociedade civil continuar sendo suprimido pelo Estado, continuaremos assistindo casos como este, aparentemente paradoxais em um primeiro momento, reveladores de características essenciais do nosso direito brasileiro. Em suma, como sabiamente asseverou Grossi[3], “ordenar não significa submeter o real a uma renovação fictícia fazendo “de albo nigrum”, construindo uma unidade desmentida pelos fatos subjacentes, mas significa compor a unidade complexa e plural, fazendo com que as diversidades possam se tornar uma força daquela unidade sem se aniquilarem. Como salienta o próprio Tomas (de Aquino), a ordem é a unidade que harmoniza, mas, ao mesmo tempo, respeita as diversidades” (p. 70).


[2] GROSSI, Paolo. Mitologias Jurídicas da Modernidade. 2ª Ed. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2007.
[3] Idem, Ibidem.