Olimpíadas, campanhas políticas, julgamento do “Mensalão”, volta de
Demóstenes Torres para o Ministério Público. Para aqueles que comigo
compartilham os ares maringaenses na Zona 07 todos os dias, até mesmo esse
“vai-não-vai” da greve na Universidade Estadual de Maringá está sendo motivo suficiente
para apagar a manifestação dos caminhoneiros finda neste dia 31/07. Como
sempre, a grande mídia veiculou a matéria de maneira rápida, em pequenas notas
ou reportagens, com aquele enfoque imparcial que dá o toque especial da mídia
brasileira. Com efeito, uma coisa é fato: alguns dias que os caminhoneiros ficaram
parados em diversos Estados foi suficiente, ao que parece, para aumentar significativamenteo preço dos alimentos.
Isto mostra uma daquelas faces do
trabalho que não costumamos ver com muita frequência, mas que são essenciais
para a manutenção do nosso cotidiano.
Confesso que, em um primeiro momento, fiquei espantado ao ler que “caminhoneiros
protestam contra a nova regra que obriga o motorista a ter um descanso de 11
horas entre duas jornadas de trabalho, uma hora de almoço por dia e repouso de
30 minutos a cada quatro horas rodadas”[1]. No mínimo, pareceu-me um
apelo paradoxal por parte dos trabalhadores, para não dizer irracional: não
queremos descanso, não queremos jornada regular, queremos rodar Brasil a fora
sem nenhum controle para nossa saúde.
Após ter contato com algumas ações de motoristas de ônibus e
caminhoneiros tentando pleitear direitos trabalhistas – incluindo jornada de
trabalho e horas extras – considero um avanço para a categoria a lei
12.619/2012. Afinal de contas, infelizmente, é notório o fato de que a
utilização de rebite e cocaína pelos motoristas rodoviários é intensa para que
deem conta de cumprir seus prazos. Como seria possível, portanto, que o Movimento União Brasil Caminhoneiro (MUBC) se
mobilizasse, então, pela manutenção deste quadro? A primeira notícia que
li, ao ficar sabendo da manifestação na quarta-feira, foi a desaprovação dos
bloqueios por parte da Unicam
(União Nacional dos Caminhoneiros), associação de caminhoneiros autônomos e
microempresários. Até mesmo microempresários, estes que talvez pudessem ter
algo contra a regulamentação de jornada e intervalos, manifestaram-se a favor,
e a MUBC era contraria. Não fazia sentido.
Entretanto, a ata de reunião celebrada entre governo, MPT e
caminhoneiros manifestantes pareceu trazer algumas luzes ao assunto que o
Jornal Nacional omitiu. Ao
contrário do que noticiou-se, a MUBC não estava contra a regulamentação. Ao
contrário: reconheceram “que a Lei
12.619/2012 representa um importante avanço na regulamentação do setor, disciplinando
a jornada de trabalho, o tempo de direção e descanso”.
E nada mais. O que a lei não previu, por exemplo, é que quando chega o momento
de descansar o caminhoneiro não pode parar na beira da estrada, pois é uma
conduta passível de multa. Mas suponhamos que este motorista tenha a felicidade
de coincidir o período de descanso com a chegada a um posto de gasolina. Muitos
deles não costumam ser locais apropriados para descansos, além de oferecerem
riscos de saque da carga. Pátios de estacionamentos também não são muito
frequentes nas rodovias, e a lei não trouxe nenhuma previsão acerca deles.
Estas são apenas algumas considerações, cuja compreensão depende do contato
frequente com a lida na estrada, o que a meu ver, não parece ser a rotina dos
membros do Congresso. O segundo problema diz respeito a própria desunião da
classe. Em um momento como esse, de singular avanço para os direitos da
categoria, MUBC e Unicam (que reúne também caminhoneiros autônomos) não somam
forças para levar o governo à negociação direta com os reais destinatários da
norma.
Representantes da classe dos caminhoneiros, Ministério Público do Trabalho e ministro dos Transportes, em reunião. |
Por derradeiro, talvez até decorrência da situação anterior, a falta de
participação do “público alvo” da lei em sua elaboração. As questões levadas ao
Ministério dos Transportes deixam claro que as frondosas estruturas do
burocrático processo legislativo, que dão sustentação ao nosso Estado, são
cheias de legalidade e vazias de direito. O poder legislativo, longe do
cotidiano das estradas, fez a lei e ponto. Os parlamentares não tem condições
de conviver com as experiências do dia-a-dia que determinam os rumos do
ordenamento da sociedade. Concedeu a “Lei Áurea” do transporte rodoviário:
concedeu a abolição das jornadas excessivas sem dar o devido suporte à empresas
e caminhoneiros para cumpri-la.
Gostaria de salientar ao leitor que, assim como a MUBC e Unicam, também
vejo a Lei 12.619/2012 como um progresso para os trabalhadores do transporte de
cargas e pessoas. Entretanto, esta situação serve para nos aclarar a razão do
“homem do povo” desconfiar do direito, como escreveu Paolo Grossi[2]:
“Não está errado o homem do povo, mesmo
em nossos dias, que traz em si ainda frescos os cromossomos do proletário da
idade burguesa quando desconfia do direito: o percebe como uma coisa que lhe é completamente
estranha, que cai do alto sobre sua cabeça, como uma telha do telhado,
confeccionado nos mistérios dos palácios do poder e evocando
sempre os espectros
desagradáveis da autoridade sancionadora, o juiz ou o funcionário
de polícia” (p. 56)
Como os caminhoneiros não tiveram a oportunidade de participação, a sua
única voz (se é que assim se pode dizer) no debate consistiu nesse transtorno
nas estradas do Brasil. Aliás, foi o meio mais eficaz que a própria democracia
lhes renegou para que as suas necessidades de profissão fossem ouvidas pelo
governo, tamanha a distancia entre as boleias e aqueles que os representam nas
cúpulas legislativas. Enquanto o caráter político da sociedade civil continuar
sendo suprimido pelo Estado, continuaremos assistindo casos como este,
aparentemente paradoxais em um primeiro momento, reveladores de características
essenciais do nosso direito brasileiro. Em suma, como sabiamente asseverou
Grossi[3],
“ordenar não significa submeter o real a
uma renovação fictícia fazendo “de albo nigrum”, construindo uma unidade desmentida pelos fatos subjacentes, mas
significa compor a unidade complexa e plural, fazendo com que as diversidades
possam se tornar uma força daquela unidade sem se aniquilarem. Como salienta o
próprio Tomas (de Aquino), a ordem é
a unidade que harmoniza, mas, ao mesmo tempo, respeita as diversidades” (p.
70).
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