segunda-feira, 24 de junho de 2013

Qual gigante acordou?

Depois de tempos parado, resolvi que era nesse calor da hora o momento de retornar a escrever por aqui.
Após a onda de protestos que tem se seguido há pouco mais de duas semanas, é possível observar diversas peculiaridades. Dentre elas, interessante se notar como a reivindicação inicial, a causa em si, parece não ter sido a principal “detonadora” do descontentamento que tirou muitas pessoas de casa. Embora as redes sociais tenham tido um papel também relevante neste processo, percebe-se que a transição do enfoque dado pelos grandes canais midiáticos ao protesto – ao saíram do discurso genérico da repressão policial à “baderna” para o foco no exagero da repressão policial – foi crucial para que o movimento saltasse à proporções muito maiores do que, talvez, houvesse previsto. Genuinamente, o Movimento Passe Livre se posicionou, desde o inicio, em sua tática pontual de lutar pela redução da tarifa. Entretanto, fruto de um florescimento espontâneo, externo ao próprio movimento, viu-se crescer exponencialmente o número de pessoas nas ruas de todo o Brasil juntamente com uma banalização da causa (que se tornou, ao mesmo tempo, muitas, e paradoxalmente, nenhuma ao mesmo tempo). O “apartidarismo” conservador e raso, as expressões violentas de fascismo e as reiteradas expressões de violência “gratuita” à prédios públicos, agências bancárias, lojas, etc. também deram uma tonalidade específica destes movimentos.

Movimento pela redução do preço da passagem em Maringá, em 18/06/2013


Apesar de todas as especificidades, ficou patente nas manifestações, de modo geral, um profundo descontentamento na sociedade civil que causou certo espanto. Aparentemente, o Brasil tem passado por um momento de expansão econômica. Os reflexos disto para grande parte dos brasileiros é a inserção num programa governamental de estímulo ao consumo, seja as classes médias, seja os “de baixo”. Esse aumento possibilitado, sobretudo, pelo incremento da oferta de crédito, tem servido como transformação ideológica das classes baixas em genérica “pobreza” e operacionalizado uma inclusão social por meio do consumo.
Está claro que a facilidade de se comprar a prestações e contrair empréstimos tem possibilitado à pessoas das camadas mais baixas acesso à mercadorias que, há alguns anos atrás, não lhes seria possível. O prof. Marcelo Ridenti, em entrevista à Chico de Oliveira, simplificou a ideia: “Se você olha da perspectiva dos de baixo, da empregada doméstica, por exemplo, ela tem celular hoje, compra televisão de plasma à prestação. Para alguns, tem a luz elétrica que não chegava. Ou seja, conversando como você conversava com as empregadas domésticas há 40 ou 50 anos atrás, as de hoje também gostam do Lula”.
O aumento do poder de consumo, todavia, tem seus poréns. Simplesmente porque se pensar em inclusão social pelo mero viés do consumo não garante ao ser humano nada mais do que... mais consumo. Embora pareça um raciocínio tautológico, significa dizer que o consumismo se encerra em si mesmo. Não gera necessariamente uma distribuição de riquezas mais equitativa, nem impede que a riqueza gerada não se concentre. Traz como consequências, além disso, uma ascensão social aparente, por meio da satisfação individualista momentânea, normalmente mediante endividamento, sem alterar as condições sociais de fato.
Aliás, Marcio Pochmann demonstrou que, de fato, cresceu o número de empregos na última década no Brasil, mas não houve uma ascensão da classe média, e sim uma significativa expansão da base. Promoveu-se ao longo da década de 2000, uma série de mudanças políticas e econômicas que resultaram em uma ampliação de empregos de baixa renda que absorveu boa parte dos desempregados gerados pelo momento neoliberal anterior. No primeiro decênio do século XXI, se verificou um crescimento dos postos de trabalho 22% maior que a década de 1970, e 44% se comparado às décadas de 1980 e 1990. Destes postos de trabalho criados recentemente, 95% deles correspondem à faixa de até 1,5 salário mínimo, numa média de 2 milhões de vagas abertas ao ano. Ao mesmo tempo, os segmentos ocupados por trabalhadores com remuneração acima de 3 salários mínimos caiu em uma média de quase 400 mil vagas a menos por ano ao longo do decênio passado[1].
O Brasil é a sétima economia do mundo (e quer crescer muito mais), com o homem que já foi o sétimo mais rico do mundo, ao passo que 47% dos assalariados brasileiros no ano de 2009 ganhavam até 1,5 salário mínimo, e 24,9% de 1,5 à 3 salários mínimos[2]. São fortes indícios de que não se está diante de um crescimento econômico acompanhado de um desenvolvimento social. Ao revés, demonstra-se que as melhorias nas condições de vida de boa parte da população, em geral, foram mínimas perto do aumento de concentração de renda entre estes e os que estão no topo desta pirâmide social. Está-se vivendo um momento paradoxal (pelo menos aparentemente): uma ascendência econômica no plano mundial, e, perante isso, demonstrações de profundo dissenso na sociedade civil, o que gera indícios de que existe algo de podre no meio deste desenvolvimento brasileiro.
Embora não pense que tenha sido este o motivo central que gerou o rápido e imenso crescimento das manifestações, parece que o que se viu corresponde aos primeiros efeitos colaterais deste modelo de desenvolvimento que se tem adotado. Assim penso, especialmente, pela crescente onde de violência que se seguiram às manifestações quando adentraram em sua fase de espontaneidade. Um descontentamento muito semelhante ao que Zygmunt Bauman observou na Inglaterra: o motim dos “excluídos do consumo”. Segundo observou o sociólogo polonês, “Qualquer que seja a explicação dada por esses meninos e meninas para a mídia, o fato é que queimar e saquear lojas não é uma tentativa de mudar a realidade social. Eles não se rebelaram contra o consumismo, e sim fizeram uma tentativa atabalhoada de se juntar ao processo. Esses distúrbios não foram planejados ou integrados, como se especulou no início. Tratou-se de uma explosão de frustração acumulada. Muito mais um porquê que um para quê.
Talvez seja o momento de observar as manifestações espontâneas, que cresceram a partir do movimento organizado para a redução da tarifa da passagem de ônibus, como consequencias de uma opção pelo crescimento econômico desprovida de compromissos com mudanças sociais. A ilusão consumerista se esvai com o tempo, as contradições do capitalismo novamente se desnudam e se percebe, entre outras coisas, que a situação de comprar TV de plasma não muda a realidade do transporte público precário. Talvez tenham razão, sim, os que levantaram o cartaz “não é apenas os 20 centavos”.
Como os próprios representantes do Passe Livre disseram no programa Roda Viva, tem-se consciência que o fim de toda essa mobilização não é apenas para que retorne aos 3 reais. Eles têm a acertada percepção de que esse aumento não é senão a ponta precária da cadeia, que reflete uma sociedade profundamente baseada na contração de renda e que polariza os estratos sociais de base do topo. O passe livre só é possível numa agenda de transformação social:(...) dentro do movimento tem pessoas que se identificam com diversas ideologias, tem pessoas que não assumem nenhum tipo de ideologia, mas é um movimento que busca uma transformação radical da sociedade”.
Portanto, penso que não esses movimentos em si, mas sim, o descontentamento que se evidenciou, a profunda insatisfação – inclusive, até da própria classe média, que visivelmente compôs a maioria do movimento – entre os brasileiros, dão conta de que todo esse modelo de Brasil que vem se construindo nos últimos anos não tem sido a opção das pessoas. Talvez seja um alerta para os setores da sociedade que tem visto no aumento do consumo um “desenvolvimento” sólido e saudável, sem perceber sua virtualidade e a consequente dominação de classes que provoca. Talvez ainda um alerta para os movimentos sociais, para se atentem às contradições que tem crescido na sociedade cujo potencial emancipatório prescinde de novas formas de articulação, para que não se tenha um crescimento de marchas espontâneas sem muito controle (evitando-se fascismos oportunistas e banalização de reivindicações) nem sofra anulação ou influencia determinantes, por parte da conservadora mídia hegemônica. Quem começou a “acordar” são os gigantes abismos sociais que ainda persistem nesta ex-sexta economia mundial.





[1] POCHMANN, Marcio. Nova Classe Média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 19, Figura 1.6.
[2] Id., p. 28, Figura 2.2.

Um comentário:

  1. Acordou tarde, mas antes tarde do que nunca. Agora vamos ver se vai permanecer acordado.

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