Depois de tempos parado, resolvi que era nesse calor da hora o momento de retornar a escrever por aqui.
Após a onda de protestos que tem se seguido há pouco mais de
duas semanas, é possível observar diversas peculiaridades. Dentre elas,
interessante se notar como a reivindicação inicial, a causa em si, parece não
ter sido a principal “detonadora” do descontentamento que tirou muitas pessoas
de casa. Embora as redes sociais tenham tido um papel também relevante neste
processo, percebe-se que a transição do enfoque dado pelos grandes canais
midiáticos ao protesto – ao saíram do discurso genérico da repressão policial à
“baderna” para o foco no exagero da repressão policial – foi crucial para que o
movimento saltasse à proporções muito maiores do que, talvez, houvesse previsto.
Genuinamente, o Movimento Passe Livre se posicionou, desde o inicio, em sua
tática pontual de lutar pela redução da tarifa. Entretanto, fruto de um florescimento
espontâneo, externo ao próprio movimento, viu-se crescer exponencialmente o número
de pessoas nas ruas de todo o Brasil juntamente com uma banalização da causa
(que se tornou, ao mesmo tempo, muitas, e paradoxalmente, nenhuma ao mesmo
tempo). O “apartidarismo” conservador e raso, as expressões violentas de fascismo
e as reiteradas expressões de violência “gratuita” à prédios públicos, agências
bancárias, lojas, etc. também deram uma tonalidade específica destes
movimentos.
Movimento pela redução do preço da passagem em Maringá, em 18/06/2013 |
Apesar de todas as especificidades, ficou patente nas
manifestações, de modo geral, um profundo descontentamento na sociedade civil
que causou certo espanto. Aparentemente, o Brasil tem passado por um momento de
expansão econômica. Os reflexos disto para grande parte dos brasileiros é a
inserção num programa governamental de estímulo ao consumo, seja as classes
médias, seja os “de baixo”. Esse aumento possibilitado, sobretudo, pelo incremento
da oferta de crédito, tem servido como transformação ideológica das classes
baixas em genérica “pobreza” e operacionalizado uma inclusão social por meio do
consumo.
Está claro que a facilidade de se comprar a prestações e
contrair empréstimos tem possibilitado à pessoas das camadas mais baixas
acesso à mercadorias que, há alguns anos atrás, não lhes seria possível. O
prof. Marcelo Ridenti, em entrevista à Chico de Oliveira, simplificou a ideia:
“Se você olha da perspectiva dos de
baixo, da empregada doméstica, por exemplo, ela tem celular hoje, compra
televisão de plasma à prestação. Para alguns, tem a luz elétrica que não
chegava. Ou seja, conversando como você conversava com as empregadas domésticas
há 40 ou 50 anos atrás, as de hoje também gostam do Lula”.
O aumento do poder de consumo, todavia, tem seus poréns.
Simplesmente porque se pensar em inclusão social pelo mero viés do consumo não
garante ao ser humano nada mais do que... mais consumo. Embora pareça um
raciocínio tautológico, significa dizer que o consumismo se encerra em si mesmo.
Não gera necessariamente uma distribuição de riquezas mais equitativa, nem impede
que a riqueza gerada não se concentre. Traz como consequências, além disso,
uma ascensão social aparente, por meio da satisfação individualista momentânea,
normalmente mediante endividamento, sem alterar as condições sociais de fato.
Aliás, Marcio Pochmann demonstrou que, de fato, cresceu o número
de empregos na última década no Brasil, mas não houve uma ascensão da classe
média, e sim uma significativa expansão da base. Promoveu-se ao longo da
década de 2000, uma série de mudanças políticas e econômicas que resultaram em
uma ampliação de empregos de baixa renda que absorveu boa parte dos
desempregados gerados pelo momento neoliberal anterior. No primeiro decênio do
século XXI, se verificou um crescimento dos postos de trabalho 22% maior que a
década de 1970, e 44% se comparado às décadas de 1980 e 1990. Destes postos de
trabalho criados recentemente, 95% deles correspondem à faixa de até 1,5
salário mínimo, numa média de 2 milhões de vagas abertas ao ano. Ao mesmo
tempo, os segmentos ocupados por trabalhadores com remuneração acima de 3
salários mínimos caiu em uma média de quase 400 mil vagas a menos por ano ao
longo do decênio passado[1].
O Brasil é a sétima economia do mundo (e quer crescer muito mais), com o homem que já foi
o sétimo mais rico do mundo, ao passo que 47% dos assalariados brasileiros no
ano de 2009 ganhavam até 1,5 salário mínimo, e 24,9% de 1,5 à 3 salários mínimos[2].
São fortes indícios de que não se está diante de um crescimento econômico
acompanhado de um desenvolvimento social. Ao revés, demonstra-se que as melhorias
nas condições de vida de boa parte da população, em geral, foram mínimas perto
do aumento de concentração de renda entre estes e os que estão no topo desta pirâmide
social. Está-se vivendo um momento paradoxal (pelo menos aparentemente): uma ascendência
econômica no plano mundial, e, perante isso, demonstrações de profundo
dissenso na sociedade civil, o que gera indícios de que existe algo de podre
no meio deste desenvolvimento brasileiro.
Embora não pense que tenha sido este o motivo central que
gerou o rápido e imenso crescimento das manifestações, parece que o que se viu
corresponde aos primeiros efeitos colaterais deste modelo de desenvolvimento
que se tem adotado. Assim penso, especialmente, pela crescente onde de violência
que se seguiram às manifestações quando adentraram
em sua fase de espontaneidade. Um descontentamento muito semelhante ao que
Zygmunt Bauman observou na Inglaterra: o motim dos “excluídos do consumo”.
Segundo observou o sociólogo polonês, “Qualquer
que seja a explicação dada por esses meninos e meninas para a mídia, o
fato é que queimar e saquear lojas não é uma tentativa de mudar
a realidade social. Eles não se rebelaram contra o consumismo, e sim
fizeram uma tentativa atabalhoada de se juntar ao processo. Esses distúrbios
não foram planejados ou integrados, como se especulou no início. Tratou-se
de uma explosão de frustração acumulada. Muito mais um porquê que um para
quê.”
Talvez seja o momento de observar as manifestações
espontâneas, que cresceram a partir do movimento organizado para a redução da
tarifa da passagem de ônibus, como consequencias de uma opção pelo crescimento
econômico desprovida de compromissos com mudanças sociais. A ilusão
consumerista se esvai com o tempo, as contradições do capitalismo novamente se
desnudam e se percebe, entre outras coisas, que a situação de comprar TV de
plasma não muda a realidade do transporte público precário. Talvez tenham
razão, sim, os que levantaram o cartaz “não é apenas os 20 centavos”.
Como os próprios representantes do Passe Livre disseram no
programa Roda Viva, tem-se consciência que o fim de toda essa mobilização não é
apenas para que retorne aos 3 reais. Eles têm a acertada percepção de que esse
aumento não é senão a ponta precária da cadeia, que reflete uma sociedade profundamente
baseada na contração de renda e que polariza os estratos sociais de base do topo.
O passe livre só é possível numa agenda de transformação social: “(...) dentro do movimento tem pessoas que se identificam com diversas
ideologias, tem pessoas que não assumem nenhum tipo de ideologia, mas é um
movimento que busca uma transformação radical da sociedade”.
Portanto, penso que não esses movimentos em si, mas sim, o
descontentamento que se evidenciou, a profunda insatisfação – inclusive, até da
própria classe média, que visivelmente compôs a maioria do movimento – entre os
brasileiros, dão conta de que todo esse modelo de Brasil que vem se construindo
nos últimos anos não tem sido a opção das pessoas. Talvez seja um alerta para os
setores da sociedade que tem visto no aumento do consumo um “desenvolvimento” sólido
e saudável, sem perceber sua virtualidade e a consequente dominação de classes
que provoca. Talvez ainda um alerta para os movimentos sociais, para se atentem
às contradições que tem crescido na sociedade cujo potencial emancipatório prescinde
de novas formas de articulação, para que não se tenha um crescimento de marchas
espontâneas sem muito controle (evitando-se fascismos oportunistas e
banalização de reivindicações) nem sofra anulação ou influencia determinantes,
por parte da conservadora mídia hegemônica. Quem começou a “acordar” são os
gigantes abismos sociais que ainda persistem nesta ex-sexta economia mundial.
Acordou tarde, mas antes tarde do que nunca. Agora vamos ver se vai permanecer acordado.
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