August Comte |
A cerca de um ano até o presente, no Brasil temos assistido a certos
movimentos de “ação” e “reação” sobretudo em relação à contração e expansão do
direito de manifestação: uma interessante “física social” – num sentido
metafórico, e não científico, do termo.
Em junho do ano
passado, as manifestações que resultaram no não aumento das passagens no
transporte público com certeza surpreenderam a muita gente. O impacto foi
tamanho que possibilitou uma significativa articulação dos movimentos sociais
agora em 2014 para a realização de manifestações críticas à Copa do Mundo.
Assim, as Jornadas de Junho serviram como uma espécie de enorme “ação” da
sociedade, que se mobilizou de forma inimaginável não apenas por conseguir a
redução dos “20 centavos”, mas por ser canal de vazão de uma série de
descontentamentos presentes na sociedade (saúde, educação, etc.).
Mas quando o
“#nãovaiterCopa” começou a tomar corpo nos principais centros urbanos, uma
“reação” não tardou a tomar corpo – e não poupou camburão e cacetete. A desmedidarepressão aos metroviários em
greve na cidade de São Paulo e a prisão de ativistas no Rio de Janeiro em
protestos durante a Copa do Mundo são os reflexos desta “onda”. Neste cenário,
a prisão de Fabio Hideki e Rafael Lusvargh se mostra representativa de tal
“reação” contra o despertar da população às ruas iniciado em Junho. Afirmo isso
não apenas em razão do resultado das perícias do Institutato de Criminalística e do Gate[3] ter
concluído que não haviam com os indiciados nenhum artefato que justificasse
suas prisões, mas sobretudo, pelo conteúdo da sentença que não revogou prisão preventiva de Fábio.
A justificativa da decisão do magistrado foi a de que: havia “depoimentos consistentes que
apontam que em poder dos mesmos foram apreendidos artefatos
explosivos/incendiários”, e Fábio era um Black Block, grupo
esse que promove “arruaça, depredação, destruição e horror [...] agem contra
tudo e todos”. Portanto, deveria permanecer encarcerado pois se libertos os
Black Blocs “poderão certamente promover e participar de outros eventos como os
tais, provocando todo o tipo de destruição e quiçá consequências mais grave
como mortes”.
Trocando em miúdos:
presumiu-se que Fabio era Black Block, e desta desdobrou-se outra presunção, a
de que por ser Black Block o réu acabaria por voltar a depredar, destruir e
talvez matar. Um pressuposto imaginário sobre outro, justificando a manutenção
de uma pessoa na prisão. Tudo isso, por óbvio, em nome da Democracia.
Contudo, talvez o
fato mais significativo – e alarmante – desta “reação” ao despertar das
mobilizações seja a criação da 4ª subchefia do Comando de
Operações Terrestres (COTER), órgão este, de acordo com o Estadão,
criado para “captar informações e monitorar movimentos sociais com
potencial para prejudicar o deslocamento e atuação de
tropas federais convocadas para conter distúrbios e que atuam na vigilância de
áreas pacificadas”. Ainda, informa o jornal que “Qualquer movimento social, de
black blocs a trabalhadores sem-teto, pode ser objeto de acompanhamento pelo
Exército [e que] em caso de ação para garantir a lei e ordem, o Exército
precisa conhecer seu líder, para isolá-lo, e precisa conhecer o material que
está sendo usado com as téticas de atuação”.
Diante disso, algumas
coisas podem ser observadas. A primeira delas é a espetacularização dos Black
Blocs. Não é qualquer mascarado que joga pedra numa vidraça de banco que é um
deles. Pessoalmente guardo várias críticas em relação a eles, mas fato é que
está-se criando uma fantasiosa noção do que são e se desenhando sobre eles uma
caricatura de inimigos a serem combatidos, uma espécie de distorção artificial
da mídia semelhante aos antigos “subversivos” na Ditadura. Um segundo elemento
que podemos observar é o claro recrudescimento da paranoia da
segurança pública. Vemos aqui no Brasil uma suposta ameaça à –
extremamente vaga – “ordem”, promovido por um também incipiente grupo “inimigo”
(Black Blocs), resultando em absurdos episódios de autoritarismo, como a prisão
de Fábio Hideki, prisão de advogados em manifestações, e mesmo a criação de um destacamento das Forças Armadas para “monitorar” movimentos
sociais.
Protesto em 15 de maio (15M) na Avenida Paulista |
Parece que estamos,
efetivamente, diante de uma ressaca. As manifestações de junho do ano passado
jogaram a bola da democracia na parede, que rebateu e voltou forte e cheia de
anti-democracia. Não me parece que estamos diante de uma volta à ditadura, mas
se põe com máxima urgência a disputa do próprio conceito de democracia. Não
devemos nunca esquecer que Ditadura Militar buscou não somente se envolver de “legalidade”, mas também se legitimar como protetora das Ordem e das instituições democráticas.
A metodologia de
August Comte se mostrou falha como ciência. Entretanto, em certo sentido temos
visto um jogo de “ações’ e “reações” no campo do direito de manifestação, fruto
dos altos e baixos das constantes edificações que uma sociedade democrática por
vezes exige. Ao mesmo tempo, essa “física” metafórica também nos põe em em
alerta, pois a “reação” que vemos pode ainda estar em curso.
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