segunda-feira, 19 de março de 2012

Enquanto houver burguesia, vai haver direito a moradia?

Tropa de Choque na Vila Sabará, Cidade Industrial, Curitiba. 
Relembrando alguns estudos de história, feitos no distante ano de 2007, passei os olhos por algumas aulas a respeito da escola dos Annales. Para aqueles que não conhecem tanto sobre historiografia, a “École des Analles” consistiu em uma corrente surgida no inicio do século XX, encabeçada por Marc Bloch e Lucien Febvre, que deram o ponta pé inicial em 1929 com a fundação da revista “Revue des Annales”. Peço aos historiadores que, por um momento, me perdoem em fazer tão pobre resumo do que foi essa escola. Todavia, o que pretendo ressaltar do pensamento de Bloch e Cia é, se não a premissa mais importante, uma das mais significativas teses defendidas Escola: a história das mentalidades se da à longo prazo, e não acompanha a mesma velocidade de outros elementos sociais que compõem a história (economia, política, etc.) Em outras palavras, pode mudar os governos, os regimes de Estado, as crises econômicas. As mentalidades presentes na sociedade só mudam a partir de uma longa caminhada do tempo.
Infelizmente, em nosso país, algumas mentalidades não mudam e, provavelmente, demorarão muito para mudar. Roniwalter Jatobá já observou que, entre outras permanências, está a de que o brasileiro acha que seu pais está cheio de corrupção. Ora, essa frase poderia ter sido ouvida na rua, num bar, enfim, em qualquer lugar hoje em dia que não estranharíamos. Entretanto, essa frase foi dita por Rudyard Kipling, viajante inglês que visitou o Brasil em 1927. Outra mentalidade que parece insistir em permanecer no país – esta mais grave, e que anda bem atual – é a eliminação da pobreza e suas mazelas na bala.
São notáveis as políticas adotadas no Rio de Janeiro para reforma urbana, feitas sob o discurso de necessidade sanitária. A primeira aconteceu em 1893, por Cândido Barata Ribeiro, supostamente para acabar com a propagação da febre amarela que assolava a cidade. Tendo em vista que boa parte dessa proliferação se dava, de fato, nos cortiços, a solução encontrada foi simples: vamos demolir tudo. Foi assim que o cortiço Cabeça de Porco do centro carioca foi destruído, colocando cerca de 4.000 pessoas na rua. E pronto. O resultado foi que os escombros subiram o morro: as milhares de pessoas desabrigadas alojaram-se nas encostas dos morros e formaram o Morro da Favela (hoje, Favela da Providência). Mais tarde, na gestão do prefeito Pereira Passos, o que era uma “questão sanitária” desvelou-se em uma eliminação da pobreza pela força, mas sem alterar o discurso oficial. Por meio do famoso “Bota-Abaixo” empreendido pelo prefeito, demoliu-se mais cortiços no centro da cidade, com intuito mesmo de reforma-la “à la Haussman”, como diz o prof. Milton Teixeira, imprimir o “modelo francês” no Rio. Para os hipócritas, mais uma ação sanitária.
As “questões sanitárias” dos antigos prefeitos estão dando lugar a outras motivações. Embora os anos tenham passado, tenha surgido a Constituição de 1988, o direito a moradia, a função social da propriedade, etc. somos surpreendidos pela desocupação de milhares de pessoas do Pinheirinho, em nome da propriedade de uma massa falida... Mas isto já foi tema de outro texto, que humildemente recomendo aos leitores. Sem falar na antiga Cracolândia de São Paulo, que simplesmente pulverizou viciados em craque para outras áreas da cidade.
Um fato recente que me chamou a atenção para a questão da moradia foi a reintegração de posse efetivada nesta segunda-feira (12/03/12), na Vila Sabará, Cidade Industrial de Curitiba. Cerca de 200 famílias invadiram um terreno 96 mil metros quadrados pertencentes Curitiba S.A, uma empresa de economia mista que substituiu a companhia Cidade Industrial de Curitiba, que fazia a destinação de áreas durante a formação do bairro. Esta invasão se deu desde o dia 18, contando com aproximadamente 400 pessoas de início, que protestavam contra a demora da Companhia de Habitação Popular de Curitiba (COHAB) no benefício para inscrições da casa própria feitas, em alguns casos, há seis anos. Após a desocupação, a prefeitura esclareceu que “as famílias inscritas no programa passaram a ser contempladas por sorteio independentemente do tempo de espera na fila”, segundo reportagem da Gazeta do Povo.
O que verificou-se no caso é que centenas de pessoas estão a alguns anos aguardando uma contemplação da COHAB para poderem financiar suas casas. A prefeitura informou que parte do terreno foi cedido em comodato para futuros projetos socioeducativos. Outra parte ficaria ociosa, portanto. Assim, gerou-se uma situação duplamente paradoxal: o Estado, ao mesmo tempo em que assegura o direito à moradia, não apenas ainda os obriga a terem suas residências por meio do consumo, e ainda tendo que esperar uma contemplação. Enquanto ela não vêm, as pessoas devem continuar contemplando o céu estrelado à noite, pela falta de uma moradia?
Isto porque, ao que parece, esse direito a moradia expresso do art. 6º da Constituição parece ter deixado de ser um direito, e tornou-se uma mercadoria. E de mercadoria, um ativo financeiro. Assim, do direito à moradia, passamos a ter o direito de consumir a moradia. Sem consumo, sem moradia. Enquanto os casos de desalojamento de famílias de áreas ocupadas permanecem repetindo-se ao longo de nossa história, pelos mais diversos motivos, a lei 11.124/05 transforma o “direito social à moradia” em “Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS, com o objetivo de: I – viabilizar para a população de menor renda o acesso à terra urbanizada e à habitação digna e sustentável; II – implementar políticas e programas de investimentos e subsídios, promovendo e viabilizando o acesso à habitação voltada à população de menor renda; e III – articular, compatibilizar, acompanhar e apoiar a atuação das instituições e órgãos que desempenham funções no setor da habitação”. O direito de morar passou a ser uma política pública, onde o consumo subsidiado é o objetivo.
Os leitores já devem estar se remexendo na cadeira. “Mas como... Então o governo tem que dar moradia de graça agora?” Não, senhores. A iniciativa da lei é louvável, pois beneficia muitas pessoas de baixa renda a conseguir uma casa própria melhor do que provavelmente elas conseguiriam comprar. Também o programa Minha Casa Minha Vida caminha neste sentido. O problema situa-se no intenso processo de combate à pobreza por meio da expulsão de áreas ocupadas. Não nos enganemos, vamos dar nomes aos bois: você só tem direito a moradia se puder compra-la, nem que seja pelo SNHIS. Ocupar não é adquirir, é apenas tomar pra si o que é ou não de direito. 
Em entrevista à Le Monde Diplomatique Brasil, Raquel Rolnik, profª da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) - USP, pronunciou-se a respeito do assunto. “(...) por que essa dimensão entra em contradição com a moradia como um direito? Porque a lógica de produção da moradia como uma mercadoria e ativo financeiro implica vários elementos que minam o direito a moradia. Um deles é que a velocidade de giro do capital exigida para sustentação desse modelo induz à produção das moradias nas franjas urbanas, onde não há cidade, repetindo um modelo histórico de ocupação territorial. O direito a moradia não é o de ter quatro paredes e um teto em cima da cabeça, mas sim uma porta de entrada para uma qualidade de vida decente, uma forma de acesso a outros direitos, como educação, saúde, meio ambiente saudável, trabalho... Ou seja, não é o direito a possuir um bem. Portanto, essas duas lógicas são contraditórias. (...) o elemento material casa construída é uma parte da história, não é toda a história. Pensar a partir dos direitos muda completamente essa perspectiva”.
Coisas assim não poderiam mais ser toleradas no século XXI. Na realidade, caros leitores, não penso que o Estado tenha que se responsabilizar pela moradia de todos, concedendo-a gratuitamente à todos. Pretendo apenas chamar a atenção para como nos esquecemos dos direitos de determinadas parcelas da população as vezes, Fala-se muito na dignidade da pessoa humana, em direitos fundamentais. Mas quando falamos em direito à moradia e função da propriedade, parece que devemos interpreta-los como direito a um financiamento barato, e desde que não ficar nenhum interesse capitalista. Talvez uma função social-capitalista da propriedade? Talvez a justificativa para a reforma urbana do Rio de Janeiro pelo “Bota-Abaixo” tenha sido convincente em seu discurso de sanitarização da cidade. Entretanto, os repetidos episódios de desapropriação por força policial de áreas ocupadas e o incentivo ao consumo de moradia, vão tornando “antigo” direito social à moradia. Só nos resta pensar que, enquanto houver a burguesia da especulação imobiliária, não vai haver poesia para a população carente de dinheiro e de direitos. 

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