sábado, 9 de agosto de 2014

O vai e vem do direito à manifestação

August Comte
August Comte, apesar de ser um autor já não muito popular hoje em dia, parece não querer calar. No início do século XIX, lançou os fundamentos de uma “ciência nova”, um primeiro esforço que originaria tanto a sociologia quanto o processo de destacamento das Ciências Sociais em relação às Ciências Exatas. Sua tese em essência era a de que, assim como havia leis naturais universais – as Leis de Newton, por exemplo – haveria também outras leis análogas àquelas que supostamente regeriam a sociedade. Ao conjunto destas leis denominou-se “Física Social”, devendo o estudioso da sociedade ser capaz de “identificá-las” e “compreende-las”. Fruto do ideiario positivista da época, o qual Comte era entusiasta, hoje se entende claramente como absurdo em termos científicos se falar em “física” social, afinal, não se compreende seres humanos somente com cálculos e estatísticas.
A cerca de um ano até o presente, no Brasil temos assistido a certos movimentos de “ação” e “reação” sobretudo em relação à contração e expansão do direito de manifestação: uma interessante “física social” – num sentido metafórico, e não científico, do termo.
Em junho do ano passado, as manifestações que resultaram no não aumento das passagens no transporte público com certeza surpreenderam a muita gente. O impacto foi tamanho que possibilitou uma significativa articulação dos movimentos sociais agora em 2014 para a realização de manifestações críticas à Copa do Mundo. Assim, as Jornadas de Junho serviram como uma espécie de enorme “ação” da sociedade, que se mobilizou de forma inimaginável não apenas por conseguir a redução dos “20 centavos”, mas por ser canal de vazão de uma série de descontentamentos presentes na sociedade (saúde, educação, etc.).
Mas quando o “#nãovaiterCopa” começou a tomar corpo nos principais centros urbanos, uma “reação” não tardou a tomar corpo – e não poupou camburão e cacetete. A desmedidarepressão aos metroviários em greve na cidade de São Paulo e a prisão de ativistas no Rio de Janeiro em protestos durante a Copa do Mundo são os reflexos desta “onda”. Neste cenário, a prisão de Fabio Hideki e Rafael Lusvargh se mostra representativa de tal “reação” contra o despertar da população às ruas iniciado em Junho. Afirmo isso não apenas em razão do resultado das perícias do Institutato de Criminalística e do Gate[3] ter concluído que não haviam com os indiciados nenhum artefato que justificasse suas prisões, mas sobretudo, pelo conteúdo da sentença que não revogou prisão preventiva de Fábio. A justificativa da decisão do magistrado foi a de que: havia “depoimentos consistentes que apontam que em poder dos mesmos foram apreendidos artefatos explosivos/incendiários”, e Fábio era um Black Block, grupo esse que promove “arruaça, depredação, destruição e horror [...] agem contra tudo e todos”. Portanto, deveria permanecer encarcerado pois se libertos os Black Blocs “poderão certamente promover e participar de outros eventos como os tais, provocando todo o tipo de destruição e quiçá consequências mais grave como mortes”.
Trocando em miúdos: presumiu-se que Fabio era Black Block, e desta desdobrou-se outra presunção, a de que por ser Black Block o réu acabaria por voltar a depredar, destruir e talvez matar. Um pressuposto imaginário sobre outro, justificando a manutenção de uma pessoa na prisão. Tudo isso, por óbvio, em nome da Democracia.
Contudo, talvez o fato mais significativo – e alarmante – desta “reação” ao despertar das mobilizações seja a criação da 4ª subchefia do Comando de Operações  Terrestres (COTER), órgão este, de acordo com o Estadão, criado para “captar informações e monitorar movimentos  sociais com potencial para prejudicar o  deslocamento e atuação  de tropas federais convocadas para conter distúrbios e que atuam na vigilância de áreas pacificadas”. Ainda, informa o jornal que “Qualquer movimento social, de black blocs a trabalhadores sem-teto, pode ser objeto de acompanhamento pelo Exército [e que] em caso de ação para garantir a lei e ordem, o Exército precisa conhecer seu líder, para isolá-lo, e precisa conhecer o material que está sendo usado com as téticas de atuação”.
Protesto em 15 de maio (15M) na Avenida Paulista
Diante disso, algumas coisas podem ser observadas. A primeira delas é a espetacularização dos Black Blocs. Não é qualquer mascarado que joga pedra numa vidraça de banco que é um deles. Pessoalmente guardo várias críticas em relação a eles, mas fato é que está-se criando uma fantasiosa noção do que são e se desenhando sobre eles uma caricatura de inimigos a serem combatidos, uma espécie de distorção artificial da mídia semelhante aos antigos “subversivos” na Ditadura. Um segundo elemento que podemos observar é o claro recrudescimento da paranoia da segurança pública. Vemos aqui no Brasil uma suposta ameaça à – extremamente vaga – “ordem”, promovido por um também incipiente grupo “inimigo” (Black Blocs), resultando em absurdos episódios de autoritarismo, como a prisão de Fábio Hideki, prisão de advogados em manifestações, e mesmo a criação de um destacamento das Forças Armadas para “monitorar” movimentos sociais.
Parece que estamos, efetivamente, diante de uma ressaca. As manifestações de junho do ano passado jogaram a bola da democracia na parede, que rebateu e voltou forte e cheia de anti-democracia. Não me parece que estamos diante de uma volta à ditadura, mas se põe com máxima urgência a disputa do próprio conceito de democracia. Não devemos nunca esquecer que Ditadura Militar buscou não somente se envolver de “legalidade”, mas também se legitimar como protetora das Ordem e das instituições democráticas.
A metodologia de August Comte se mostrou falha como ciência. Entretanto, em certo sentido temos visto um jogo de “ações’ e “reações” no campo do direito de manifestação, fruto dos altos e baixos das constantes edificações que uma sociedade democrática por vezes exige. Ao mesmo tempo, essa “física” metafórica também nos põe em em alerta, pois a “reação” que vemos pode ainda estar em curso.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Heli (2013)

Alberto e Estela.
Nesta etapa de contagem regressiva para a Copa do Mundo, vivemos num momento de grandes movimentações na sociedade. Não apenas o Estado, que já tratou de cuidar bem da segurança para a Copa, mas sobretudo, a própria população tem se organizado de diferentes maneiras, como a campanha do “não vai ter Copa”, as greves de diversas categorias, as reivindicações dos membros do MTSTprotestos de indígenas, entre outros. Por outro lado, as críticas também não tardaram a aparecer. Para uns, os manifestantes estariam ferindo o direito de ir e vir dos cidadãos e prejudicando “a sociedade”, para outros, ganham destaque dramas individuais de pessoas que dependiam de condução pública e foram prejudicados pelos motoristas grevistas. Enfim, o Estado Democrático de Direito, esse o grande garantidor universal das garantias individuais, estaria sendo desmontado pelas manifestações que temos assistido.
Esta pequena introdução nos mostra a grandiosidade artística que é o filme “Heli”, do diretor Amat Escalente. Heli é o nome também da personagem principal da obra, um operário mexicano que trabalha em uma montadora de veículos automotores. Ao vê-lo no cinema, apesar do filme focalizar na questão do tráfico de drogas no México, confesso que não pude deixar de enxergar diversos nexos com nosso contexto. Enquanto alguns estão temerosos quanto aos ataques ao direito de ir e vir (e deixo claro que penso que deve, por obvio, ser garantido e respeitado), o filme chama a atenção para elementos socialmente mais graves. Aliás, muitos aspectos relevantes podem ser levantados neste filme, como a questão da mulher na sociedade (retratada no filme, como a dona de casa submissa ao homem, reclusa aos afazeres domésticos), os problemas de uma vida conjugal em meio a precariedade social (lembrando um pouco Maria e Tião, em “Eles não Usam Black Tie”). Mas percebi dois aspectos que ganham certo relevo.
O primeiro deles são os retratos do trabalho. Fica evidente como a maquinaria, as novas tecnologias e a reengenharia industrial não tem outro fim senão aumentar a produção de peças de automóveis em menor tempo. A cena em que a personagem Heli não executa direito uma ação com a máquina e esta dispara uma sirene incessante acusando o erro é, de certa maneira, simbólica neste sentido. Desde os anos 1980 se vem afirmando que o trabalho não tem mais a mesma relevância social que no século XX, que não é mais uma categoria determinante, sociedade 20 por 80, enfim, a proclamação do “fim do proletariado” (como queria André Gorz). A fábrica onde Heli trabalha só mostra como a tecnologia só nasce para dinamizar o trabalho do homem, sem substitui-lo completamente mas diminuindo a necessidade do ser humano na linha de produção. Este fenômeno leva, entre outros, ao aumento da população sem emprego, substituída pela automação, que também integra o atual exército industrial de reserva.
É ainda interessante observar que neste terreno os trabalhadores muitas vezes se encontram sem outras opções de sobrevivência. Isto leva a busca por alternativas como pequenos comércios, “bicos”, e também, a cooptação ao tráfico de drogas. Neste contexto surge Alberto (Beto). Nitidamente um rapaz pobre, tentando ainda ingressar no mercado de trabalho (tinha 17 anos), ao entrar para a polícia local acaba se envolvendo com o tráfico local comandado por milicianos. Ocorre que ele resolve se casar com sua namorada (Estela, irmã mais nova de Heli), e na expectativa de  fazer algum dinheiro, furta 2 pacotes de cocaína dos traficantes.
Percebemos então como o filme apresenta a pobreza e a falta de perspectivas de inserção no mercado de trabalho, isto é, a inércia na situação de exército de reserva sem maiores perspectivas de mudança futura de Alberto, enquanto uma mazela social, um poderoso catalizador na cooptação de jovens ao tráfico de drogas.
Heli na mira da arma de um miliciano
Heli, descobrindo que haviam sido escondidos na caixa d’água de sua casa, livra-se da droga, jogando-a num poço. Como traficantes e polícia estão no mesmo negócio, são agentes policiais fortemente armados que vão até a casa do operário para cobrar o material roubado por Beto. Arrombam a porta da casa, os milicianos matam o pai de Heli, sequestram Estela e entregam Heli e Beto aos traficantes para serem torturados. A história não acaba por ai. Após voltar do cativeiro e dar seu depoimento a polícia, Heli percebe a extrema desconfiança de que ele mesmo e seu pai fizessem parte do movimento, o que fez com que omitisse alguns elementos dos fatos que levaram ao crime. Passado algum tempo, enquanto o jornal noticiava a decapitação de traficantes locais, resolve contar toda a história a polícia: que Alberto era namorado de sua irmã e havia escondido a cocaína em sua casa.
É o momento que Heli fica sabendo que seu “processo” já havia sido arquivado na polícia. O filme dá relevo, então, a segunda faceta da realidade que chamou a atenção. A partir deste momento, retrata-se uma efetividade do Estado Democrático de Direito que muitos talvez desconheçam ou cinicamente ignorem. Era mais um caso de morte e desaparecimento em razão do tráfico, e mesmo tendo complementado a história para que a polícia realizasse as investigações com zelo, sua irmã não foi localizada. “Heli”, ao mostrar este cotidiano de violência e pobreza em uma pequena cidade do México, alerta para o fato de que estas questões não são pontuais. Diante do fato, se real fosse, poderíamos culpar a polícia (ou o judiciário) que tem muitos processos e não dá conta de todos eles; culpar os traficantes, que são bandidos violentos sem respeito nenhum ao ser humano; até culpar o próprio governo, que no início do filme aparece realizando uma cerimonia oficial de queimada de drogas apreendidas pela polícia, e é ineficiente (ou conivente) para combater as milícias.
Em certa medida, estes apontamentos não deixam de ter sua razão. Todavia, não são mais que visões fracionadas da realidade, manifestações esparsas de uma totalidade com a qual não dialogam, como se – e este é o ponto aqui – a solução para todo esse caos social estivesse em cada um desses “culpados”. Não é a toa que Boaventura de Sousa Santos, ao analisar movimentos sociais e o direito, observa que existem 3 tipos de sociedade, de acordo com o nível de proximidade com o Estado. Nos interessa aqui o que ele chama “sociedade civil incivil”. São cidadãos comuns, como qualquer outro dentro de um Estado-nação moderno, só que, na prática, vivem totalmente à margem do Contrato Social. Em outros termos, são pessoas que, como Heli, não tem o devido acesso a provisões do Estado como pessoas da elite, que não tem a mesma prestação jurisdicional, que não tem seu direito de asilo em casa respeitado, que não tem direito a moradia e transporte publico (Heli sempre vai de bicicleta para o trabalho, seu pai ia a pé) respeitados, entre tantos outros. A parte da sociedade que o filme retrata ludicamente, vive uma situação estrutural de “cidadania diferenciada”, na prática, num verdadeiro estado de não-cidadãos.
Trata-se de um filme muito chocante, especialmente pelo nível de violência que apresenta. Mas a violência não é nem gratuita nem sensacionalista, ao contrário, visa retratar a violência cruel do dia-a-dia destas pessoas, colocando o expectador tão próximo ao choque e ao sentimento de horror tão realista que provocaria inveja em De Sica. “Heli” nos faz pensar que certas polarizações que temos visto, como “eu defendo a população não ser prejudicada, e vocês, motoristas, defendem o direito de greve” ou “eu defendo o direito de ir e vir, vocês, manifestantes, o violam”, são enormes paradoxos; são a culpabilização dos sintomas quando se deve atacar a doença, pois problemas sociais – do tráfico de drogas no México a especulação imobiliária e desapropriações para a Copa – são mazelas estruturais oriundas do modo de produção capitalista.
Heli, sendo torturado, após ter sido entregue pela polícia aos traficantes 
Portanto, fica uma importante reflexão para enxergarmos o próprio Brasil que vemos nos jornais e nas ruas. Por obvio, não se trata de atribuir todo e qualquer problema da vida ao capitalismo de maneira ingênua, mas sim, compreender que mazelas sociais não são problemas pontuais mas consequências estruturais do próprio modelo capitalista. No entanto, o que não se pode negar é que “Heli” traz correspondências sem par para o nosso contexto brasileiro de mobilizações pré-Copa. Como diz Souto Maior ao comentar a obra “Violência” de Zizek, “Acusam as manifestações populares de violentas. Mas são, em geral, reações a violências constantemente sofridas que não se apresentam como tal. O problema é que a reação da revolta, materializada em ato coletivo, é muito mais facilmente visualizada. Essa violência concreta acaba sendo o argumento conveniente para a repressão institucionalizada, fazendo com que as vítimas das violências reais sejam novamente violentadas” (grifos meus)

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Qual gigante acordou?

Depois de tempos parado, resolvi que era nesse calor da hora o momento de retornar a escrever por aqui.
Após a onda de protestos que tem se seguido há pouco mais de duas semanas, é possível observar diversas peculiaridades. Dentre elas, interessante se notar como a reivindicação inicial, a causa em si, parece não ter sido a principal “detonadora” do descontentamento que tirou muitas pessoas de casa. Embora as redes sociais tenham tido um papel também relevante neste processo, percebe-se que a transição do enfoque dado pelos grandes canais midiáticos ao protesto – ao saíram do discurso genérico da repressão policial à “baderna” para o foco no exagero da repressão policial – foi crucial para que o movimento saltasse à proporções muito maiores do que, talvez, houvesse previsto. Genuinamente, o Movimento Passe Livre se posicionou, desde o inicio, em sua tática pontual de lutar pela redução da tarifa. Entretanto, fruto de um florescimento espontâneo, externo ao próprio movimento, viu-se crescer exponencialmente o número de pessoas nas ruas de todo o Brasil juntamente com uma banalização da causa (que se tornou, ao mesmo tempo, muitas, e paradoxalmente, nenhuma ao mesmo tempo). O “apartidarismo” conservador e raso, as expressões violentas de fascismo e as reiteradas expressões de violência “gratuita” à prédios públicos, agências bancárias, lojas, etc. também deram uma tonalidade específica destes movimentos.

Movimento pela redução do preço da passagem em Maringá, em 18/06/2013


Apesar de todas as especificidades, ficou patente nas manifestações, de modo geral, um profundo descontentamento na sociedade civil que causou certo espanto. Aparentemente, o Brasil tem passado por um momento de expansão econômica. Os reflexos disto para grande parte dos brasileiros é a inserção num programa governamental de estímulo ao consumo, seja as classes médias, seja os “de baixo”. Esse aumento possibilitado, sobretudo, pelo incremento da oferta de crédito, tem servido como transformação ideológica das classes baixas em genérica “pobreza” e operacionalizado uma inclusão social por meio do consumo.
Está claro que a facilidade de se comprar a prestações e contrair empréstimos tem possibilitado à pessoas das camadas mais baixas acesso à mercadorias que, há alguns anos atrás, não lhes seria possível. O prof. Marcelo Ridenti, em entrevista à Chico de Oliveira, simplificou a ideia: “Se você olha da perspectiva dos de baixo, da empregada doméstica, por exemplo, ela tem celular hoje, compra televisão de plasma à prestação. Para alguns, tem a luz elétrica que não chegava. Ou seja, conversando como você conversava com as empregadas domésticas há 40 ou 50 anos atrás, as de hoje também gostam do Lula”.
O aumento do poder de consumo, todavia, tem seus poréns. Simplesmente porque se pensar em inclusão social pelo mero viés do consumo não garante ao ser humano nada mais do que... mais consumo. Embora pareça um raciocínio tautológico, significa dizer que o consumismo se encerra em si mesmo. Não gera necessariamente uma distribuição de riquezas mais equitativa, nem impede que a riqueza gerada não se concentre. Traz como consequências, além disso, uma ascensão social aparente, por meio da satisfação individualista momentânea, normalmente mediante endividamento, sem alterar as condições sociais de fato.
Aliás, Marcio Pochmann demonstrou que, de fato, cresceu o número de empregos na última década no Brasil, mas não houve uma ascensão da classe média, e sim uma significativa expansão da base. Promoveu-se ao longo da década de 2000, uma série de mudanças políticas e econômicas que resultaram em uma ampliação de empregos de baixa renda que absorveu boa parte dos desempregados gerados pelo momento neoliberal anterior. No primeiro decênio do século XXI, se verificou um crescimento dos postos de trabalho 22% maior que a década de 1970, e 44% se comparado às décadas de 1980 e 1990. Destes postos de trabalho criados recentemente, 95% deles correspondem à faixa de até 1,5 salário mínimo, numa média de 2 milhões de vagas abertas ao ano. Ao mesmo tempo, os segmentos ocupados por trabalhadores com remuneração acima de 3 salários mínimos caiu em uma média de quase 400 mil vagas a menos por ano ao longo do decênio passado[1].
O Brasil é a sétima economia do mundo (e quer crescer muito mais), com o homem que já foi o sétimo mais rico do mundo, ao passo que 47% dos assalariados brasileiros no ano de 2009 ganhavam até 1,5 salário mínimo, e 24,9% de 1,5 à 3 salários mínimos[2]. São fortes indícios de que não se está diante de um crescimento econômico acompanhado de um desenvolvimento social. Ao revés, demonstra-se que as melhorias nas condições de vida de boa parte da população, em geral, foram mínimas perto do aumento de concentração de renda entre estes e os que estão no topo desta pirâmide social. Está-se vivendo um momento paradoxal (pelo menos aparentemente): uma ascendência econômica no plano mundial, e, perante isso, demonstrações de profundo dissenso na sociedade civil, o que gera indícios de que existe algo de podre no meio deste desenvolvimento brasileiro.
Embora não pense que tenha sido este o motivo central que gerou o rápido e imenso crescimento das manifestações, parece que o que se viu corresponde aos primeiros efeitos colaterais deste modelo de desenvolvimento que se tem adotado. Assim penso, especialmente, pela crescente onde de violência que se seguiram às manifestações quando adentraram em sua fase de espontaneidade. Um descontentamento muito semelhante ao que Zygmunt Bauman observou na Inglaterra: o motim dos “excluídos do consumo”. Segundo observou o sociólogo polonês, “Qualquer que seja a explicação dada por esses meninos e meninas para a mídia, o fato é que queimar e saquear lojas não é uma tentativa de mudar a realidade social. Eles não se rebelaram contra o consumismo, e sim fizeram uma tentativa atabalhoada de se juntar ao processo. Esses distúrbios não foram planejados ou integrados, como se especulou no início. Tratou-se de uma explosão de frustração acumulada. Muito mais um porquê que um para quê.
Talvez seja o momento de observar as manifestações espontâneas, que cresceram a partir do movimento organizado para a redução da tarifa da passagem de ônibus, como consequencias de uma opção pelo crescimento econômico desprovida de compromissos com mudanças sociais. A ilusão consumerista se esvai com o tempo, as contradições do capitalismo novamente se desnudam e se percebe, entre outras coisas, que a situação de comprar TV de plasma não muda a realidade do transporte público precário. Talvez tenham razão, sim, os que levantaram o cartaz “não é apenas os 20 centavos”.
Como os próprios representantes do Passe Livre disseram no programa Roda Viva, tem-se consciência que o fim de toda essa mobilização não é apenas para que retorne aos 3 reais. Eles têm a acertada percepção de que esse aumento não é senão a ponta precária da cadeia, que reflete uma sociedade profundamente baseada na contração de renda e que polariza os estratos sociais de base do topo. O passe livre só é possível numa agenda de transformação social:(...) dentro do movimento tem pessoas que se identificam com diversas ideologias, tem pessoas que não assumem nenhum tipo de ideologia, mas é um movimento que busca uma transformação radical da sociedade”.
Portanto, penso que não esses movimentos em si, mas sim, o descontentamento que se evidenciou, a profunda insatisfação – inclusive, até da própria classe média, que visivelmente compôs a maioria do movimento – entre os brasileiros, dão conta de que todo esse modelo de Brasil que vem se construindo nos últimos anos não tem sido a opção das pessoas. Talvez seja um alerta para os setores da sociedade que tem visto no aumento do consumo um “desenvolvimento” sólido e saudável, sem perceber sua virtualidade e a consequente dominação de classes que provoca. Talvez ainda um alerta para os movimentos sociais, para se atentem às contradições que tem crescido na sociedade cujo potencial emancipatório prescinde de novas formas de articulação, para que não se tenha um crescimento de marchas espontâneas sem muito controle (evitando-se fascismos oportunistas e banalização de reivindicações) nem sofra anulação ou influencia determinantes, por parte da conservadora mídia hegemônica. Quem começou a “acordar” são os gigantes abismos sociais que ainda persistem nesta ex-sexta economia mundial.





[1] POCHMANN, Marcio. Nova Classe Média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 19, Figura 1.6.
[2] Id., p. 28, Figura 2.2.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Eleições e a “falta de consciência” dos eleitores



Encerraram-se as eleições municipais. Não que isto tenha representado para mim algo extraordinário, em si mesmo. Aliás, confesso que, pessoalmente, a notícia da renovação dos indivíduos que compõem as câmaras municipais e cargos do executivo no âmbito municipal foi por mim recepcionada com certa apatia. Entretanto, não sem apatia percebi a reprodução de algumas coisas. Confesso que me utilizei tão somente das redes sociais para observá-las, mas que me apresentaram um quadro interessante.
A primeira delas foi a reeleição de políticos exaustivamente criticados pela população. Refiro-me àqueles que, por vezes, envolveram-se em escândalos de corrupção, que votaram favoravelmente ao aumento de salários, do número de cadeiras nas câmaras, etc., que foram severamente censurados por boa parte da sociedade, mas que reassumirão seus cargos. Não citarei nomes, mas creio que o leitor não deverá fazer um esforço mental muito grande para identificar alguns deles em seu município.
Em segundo lugar – e devo admitir que este foi o que mais me surpreendeu – uma espécie de inconformismo geral em relação a eleição de alguns candidatos, digamos, “exóticos”. As redes repentinamente se encheram de críticas, lamentos inconformados, xingamentos, enfim, as mais variadas expressões de reprovação com relação a estas figuras. Trata-se de candidatos que costumeiramente aparecem nos pleitos municipais: o “Tião da Muleta”, o “Zé da Lata”, entre outras figuras que, com muitas piadas, chavões, perfomaces cômicas e pouco discurso político, mais parecem personagens de um stand up do que candidatos. Chamou-me a atenção, sobretudo, os apelos à cidadania que alguns pareceriam heroicamente conclamar, à falta de sanidade mental dos eleitores, à falta de “consciência” dos que votaram nulo ou nestes candidatos, à vergonha que sentiam de morarem num país que elegeu como deputado um “palhaço” e agora vereadores que não sequer sabiam escrever o nome.
O mais interessante, a meu ver, é que tudo parou por ai. Tenho que fazer justiça a alguns que demonstrou uma preocupação do tipo “agora temos que fiscalizá-los”, mas tão somente isso. Realmente, estas eleições me inclinaram para uma questão extremamente relevante: como estamos acostumados a nadar apenas no raso e nos conformarmos com o resto. Em outras palavras: culpa-se a “inconsciência” do povo brasileiro, ataca-se sua “sanidade mental”, à baixa escolaridade dos eleitos, à falta de propostas, enfim, como se isso fosse o problema principal.
O que quero dizer, leitor, é que com muita facilidade se lançam tais juízos de valor partindo-se do ponto de vista confortável e negligente (para não dizer cínico) de que vivemos em uma plena democracia, onde os candidatos ditos “sérios” livremente exerceriam – quando eleitos – seus mandatos norteados por um místico “espírito cívico” pelo bem geral da nação (aqui, dos municípios). O que se verifica na prática é que, alfabetizados e analfabetos, políticos “sérios” ou “exóticos”, não passam de instrumentos que gravitaram nas mãos de outras pessoas, essas sim, que deverão desempenhar papéis políticos já previamente definidos aos pleitos eleitorais. As cartas do jogo político já foram distribuídas pelos grupos que sustentam o poder: as grandes empresas que não são eleitas por nós, mas monopolizam os lobbys e o tráfico de influência que fazem a máquina pública se mover de fato. Aos eleitos, na maioria das vezes, só cabe sentar à mesa e jogar segundo as regras da mesa.
É incrível a presença, nestes “protestos”, de um inconsciente sentimento de conformismo com esse status quo de democracia meramente “formal” que estamos  obrigatoriamente inseridos sem que haja qualquer abertura a negociação para construção de uma via diversa. Como já disse José Saramago, sobre globalização e as corporações econômicas e financeiras: “claro que não estão dispostas a negociar. E não estão dispostas a negociar porque sequer necessitam. Tem um intermediário que se encarrega de apagar os fogos, mais ou menos, que se manifestam aqui e além. E esses intermediários são os governos nacionais. Quer dizer, os governos transformaram-se em comissários políticos do poder econômico”. E continua: “não podemos continuar a chamar esta fantochada... ou se quer um termo mais delicado, com essa fachada, que é continuar a chamar de democracia algo que não tem nada a ver com democracia. Vivemos num regime plutocrático, o governo dos ricos sobre os pobres, e isto com um sistema que podemos chamar representativo, e politicamente representativo e só”.
De que adianta todo esse inconformismo se candidatos “sérios” e “exóticos”, ao tomarem posse, farão, em regra, exatamente o que outros homens não eleitos lhe dirão para fazer, nas coxias do cotidiano político? Até quando resignar-se a esta preguiçosa e inerte crítica aos que votaram no palhaço, no malabarista do sinal, etc., quando na verdade, salvo em raríssimas exceções, mesmo os políticos ditos “sérios” cumprirão uma agenda já preparada pelos que realmente detém o poder? Como já disse o prof. David Harvey[1], não existem grandes homens, mas homens que controlam redes de pessoas com maestria. Assim foi a eleição de Reagan na década de 1980: “O triunfo da estética sobre a ética não podia ser mais evidente. A construção de imagem na política nada tem de novidade. O espetáculo, a pompa e circunstancia, o comportamento, o carisma, o paternalismo e a retórica há muito são parte da aura do poder político. E também o grau até o qual isso pode Sr comprado, produzido ou adquirido de outra maneira há muito é importante para a manutenção desse poder (...) A eleição de um ex-ator de cinema, Ronald Reagan, para um dos cargos mais poderosos do mundo dá uma nova dimensão às possibilidades de uma política mediatizada apenas moldada por imagens”. Na sequencia, explica a razão disto: ““O presidente teflon”, como ele veio a ser conhecido (simplesmente porque nenhuma acusação lançada contra ele, por mais verdadeira, parecia colar), podia cometer erro após erro, mas nunca ser chamado a prestar contas” (HARVEY, p. 295-296).
Ficamos, assim, adstritos a ataques rasos, enquanto incentivamos uma democracia comissária dos interesses corporativos, uma democracia de sombras... Quem serão, portanto, os “inconscientes” nesta história toda?
Paulo Maluf e Celso Pitta




[1] HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. 21ª Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011.

sábado, 4 de agosto de 2012

A paralisação dos caminhoneiros



Olimpíadas, campanhas políticas, julgamento do “Mensalão”, volta de Demóstenes Torres para o Ministério Público. Para aqueles que comigo compartilham os ares maringaenses na Zona 07 todos os dias, até mesmo esse “vai-não-vai” da greve na Universidade Estadual de Maringá está sendo motivo suficiente para apagar a manifestação dos caminhoneiros finda neste dia 31/07. Como sempre, a grande mídia veiculou a matéria de maneira rápida, em pequenas notas ou reportagens, com aquele enfoque imparcial que dá o toque especial da mídia brasileira. Com efeito, uma coisa é fato: alguns dias que os caminhoneiros ficaram parados em diversos Estados foi suficiente, ao que parece, para aumentar significativamenteo preço dos alimentos.  Isto mostra uma daquelas faces do trabalho que não costumamos ver com muita frequência, mas que são essenciais para a manutenção do nosso cotidiano.
Confesso que, em um primeiro momento, fiquei espantado ao ler que “caminhoneiros protestam contra a nova regra que obriga o motorista a ter um descanso de 11 horas entre duas jornadas de trabalho, uma hora de almoço por dia e repouso de 30 minutos a cada quatro horas rodadas[1]. No mínimo, pareceu-me um apelo paradoxal por parte dos trabalhadores, para não dizer irracional: não queremos descanso, não queremos jornada regular, queremos rodar Brasil a fora sem nenhum controle para nossa saúde.
Após ter contato com algumas ações de motoristas de ônibus e caminhoneiros tentando pleitear direitos trabalhistas – incluindo jornada de trabalho e horas extras – considero um avanço para a categoria a lei 12.619/2012. Afinal de contas, infelizmente, é notório o fato de que a utilização de rebite e cocaína pelos motoristas rodoviários é intensa para que deem conta de cumprir seus prazos. Como seria possível, portanto, que o Movimento União Brasil Caminhoneiro (MUBC) se mobilizasse, então, pela manutenção deste quadro? A primeira notícia que li, ao ficar sabendo da manifestação na quarta-feira, foi a desaprovação dos bloqueios por parte da Unicam (União Nacional dos Caminhoneiros), associação de caminhoneiros autônomos e microempresários. Até mesmo microempresários, estes que talvez pudessem ter algo contra a regulamentação de jornada e intervalos, manifestaram-se a favor, e a MUBC era contraria. Não fazia sentido.
Entretanto, a ata de reunião celebrada entre governo, MPT e caminhoneiros manifestantes pareceu trazer algumas luzes ao assunto que o Jornal Nacional omitiu. Ao contrário do que noticiou-se, a MUBC não estava contra a regulamentação. Ao contrário: reconheceram “que a Lei 12.619/2012 representa um importante avanço na regulamentação do setor, disciplinando a jornada de trabalho, o tempo de direção e descanso”. E nada mais. O que a lei não previu, por exemplo, é que quando chega o momento de descansar o caminhoneiro não pode parar na beira da estrada, pois é uma conduta passível de multa. Mas suponhamos que este motorista tenha a felicidade de coincidir o período de descanso com a chegada a um posto de gasolina. Muitos deles não costumam ser locais apropriados para descansos, além de oferecerem riscos de saque da carga. Pátios de estacionamentos também não são muito frequentes nas rodovias, e a lei não trouxe nenhuma previsão acerca deles. Estas são apenas algumas considerações, cuja compreensão depende do contato frequente com a lida na estrada, o que a meu ver, não parece ser a rotina dos membros do Congresso. O segundo problema diz respeito a própria desunião da classe. Em um momento como esse, de singular avanço para os direitos da categoria, MUBC e Unicam (que reúne também caminhoneiros autônomos) não somam forças para levar o governo à negociação direta com os reais destinatários da norma.

Representantes da classe dos caminhoneiros, Ministério Público do Trabalho e ministro dos Transportes, em reunião.

Por derradeiro, talvez até decorrência da situação anterior, a falta de participação do “público alvo” da lei em sua elaboração. As questões levadas ao Ministério dos Transportes deixam claro que as frondosas estruturas do burocrático processo legislativo, que dão sustentação ao nosso Estado, são cheias de legalidade e vazias de direito. O poder legislativo, longe do cotidiano das estradas, fez a lei e ponto. Os parlamentares não tem condições de conviver com as experiências do dia-a-dia que determinam os rumos do ordenamento da sociedade. Concedeu a “Lei Áurea” do transporte rodoviário: concedeu a abolição das jornadas excessivas sem dar o devido suporte à empresas e caminhoneiros para cumpri-la.
Gostaria de salientar ao leitor que, assim como a MUBC e Unicam, também vejo a Lei 12.619/2012 como um progresso para os trabalhadores do transporte de cargas e pessoas. Entretanto, esta situação serve para nos aclarar a razão do “homem do povo” desconfiar do direito, como escreveu Paolo Grossi[2]: “Não está errado o homem do povo, mesmo em nossos dias, que traz em si ainda frescos os cromossomos do proletário da idade burguesa quando desconfia do direito: o percebe como uma coisa que lhe é completamente estranha, que cai do alto sobre sua cabeça, como uma telha do telhado, confeccionado nos mistérios dos palácios do poder  e evocando  sempre  os espectros desagradáveis  da autoridade  sancionadora, o juiz ou o  funcionário  de polícia” (p. 56)
Como os caminhoneiros não tiveram a oportunidade de participação, a sua única voz (se é que assim se pode dizer) no debate consistiu nesse transtorno nas estradas do Brasil. Aliás, foi o meio mais eficaz que a própria democracia lhes renegou para que as suas necessidades de profissão fossem ouvidas pelo governo, tamanha a distancia entre as boleias e aqueles que os representam nas cúpulas legislativas. Enquanto o caráter político da sociedade civil continuar sendo suprimido pelo Estado, continuaremos assistindo casos como este, aparentemente paradoxais em um primeiro momento, reveladores de características essenciais do nosso direito brasileiro. Em suma, como sabiamente asseverou Grossi[3], “ordenar não significa submeter o real a uma renovação fictícia fazendo “de albo nigrum”, construindo uma unidade desmentida pelos fatos subjacentes, mas significa compor a unidade complexa e plural, fazendo com que as diversidades possam se tornar uma força daquela unidade sem se aniquilarem. Como salienta o próprio Tomas (de Aquino), a ordem é a unidade que harmoniza, mas, ao mesmo tempo, respeita as diversidades” (p. 70).


[2] GROSSI, Paolo. Mitologias Jurídicas da Modernidade. 2ª Ed. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2007.
[3] Idem, Ibidem. 

segunda-feira, 19 de março de 2012

Enquanto houver burguesia, vai haver direito a moradia?

Tropa de Choque na Vila Sabará, Cidade Industrial, Curitiba. 
Relembrando alguns estudos de história, feitos no distante ano de 2007, passei os olhos por algumas aulas a respeito da escola dos Annales. Para aqueles que não conhecem tanto sobre historiografia, a “École des Analles” consistiu em uma corrente surgida no inicio do século XX, encabeçada por Marc Bloch e Lucien Febvre, que deram o ponta pé inicial em 1929 com a fundação da revista “Revue des Annales”. Peço aos historiadores que, por um momento, me perdoem em fazer tão pobre resumo do que foi essa escola. Todavia, o que pretendo ressaltar do pensamento de Bloch e Cia é, se não a premissa mais importante, uma das mais significativas teses defendidas Escola: a história das mentalidades se da à longo prazo, e não acompanha a mesma velocidade de outros elementos sociais que compõem a história (economia, política, etc.) Em outras palavras, pode mudar os governos, os regimes de Estado, as crises econômicas. As mentalidades presentes na sociedade só mudam a partir de uma longa caminhada do tempo.
Infelizmente, em nosso país, algumas mentalidades não mudam e, provavelmente, demorarão muito para mudar. Roniwalter Jatobá já observou que, entre outras permanências, está a de que o brasileiro acha que seu pais está cheio de corrupção. Ora, essa frase poderia ter sido ouvida na rua, num bar, enfim, em qualquer lugar hoje em dia que não estranharíamos. Entretanto, essa frase foi dita por Rudyard Kipling, viajante inglês que visitou o Brasil em 1927. Outra mentalidade que parece insistir em permanecer no país – esta mais grave, e que anda bem atual – é a eliminação da pobreza e suas mazelas na bala.
São notáveis as políticas adotadas no Rio de Janeiro para reforma urbana, feitas sob o discurso de necessidade sanitária. A primeira aconteceu em 1893, por Cândido Barata Ribeiro, supostamente para acabar com a propagação da febre amarela que assolava a cidade. Tendo em vista que boa parte dessa proliferação se dava, de fato, nos cortiços, a solução encontrada foi simples: vamos demolir tudo. Foi assim que o cortiço Cabeça de Porco do centro carioca foi destruído, colocando cerca de 4.000 pessoas na rua. E pronto. O resultado foi que os escombros subiram o morro: as milhares de pessoas desabrigadas alojaram-se nas encostas dos morros e formaram o Morro da Favela (hoje, Favela da Providência). Mais tarde, na gestão do prefeito Pereira Passos, o que era uma “questão sanitária” desvelou-se em uma eliminação da pobreza pela força, mas sem alterar o discurso oficial. Por meio do famoso “Bota-Abaixo” empreendido pelo prefeito, demoliu-se mais cortiços no centro da cidade, com intuito mesmo de reforma-la “à la Haussman”, como diz o prof. Milton Teixeira, imprimir o “modelo francês” no Rio. Para os hipócritas, mais uma ação sanitária.
As “questões sanitárias” dos antigos prefeitos estão dando lugar a outras motivações. Embora os anos tenham passado, tenha surgido a Constituição de 1988, o direito a moradia, a função social da propriedade, etc. somos surpreendidos pela desocupação de milhares de pessoas do Pinheirinho, em nome da propriedade de uma massa falida... Mas isto já foi tema de outro texto, que humildemente recomendo aos leitores. Sem falar na antiga Cracolândia de São Paulo, que simplesmente pulverizou viciados em craque para outras áreas da cidade.
Um fato recente que me chamou a atenção para a questão da moradia foi a reintegração de posse efetivada nesta segunda-feira (12/03/12), na Vila Sabará, Cidade Industrial de Curitiba. Cerca de 200 famílias invadiram um terreno 96 mil metros quadrados pertencentes Curitiba S.A, uma empresa de economia mista que substituiu a companhia Cidade Industrial de Curitiba, que fazia a destinação de áreas durante a formação do bairro. Esta invasão se deu desde o dia 18, contando com aproximadamente 400 pessoas de início, que protestavam contra a demora da Companhia de Habitação Popular de Curitiba (COHAB) no benefício para inscrições da casa própria feitas, em alguns casos, há seis anos. Após a desocupação, a prefeitura esclareceu que “as famílias inscritas no programa passaram a ser contempladas por sorteio independentemente do tempo de espera na fila”, segundo reportagem da Gazeta do Povo.
O que verificou-se no caso é que centenas de pessoas estão a alguns anos aguardando uma contemplação da COHAB para poderem financiar suas casas. A prefeitura informou que parte do terreno foi cedido em comodato para futuros projetos socioeducativos. Outra parte ficaria ociosa, portanto. Assim, gerou-se uma situação duplamente paradoxal: o Estado, ao mesmo tempo em que assegura o direito à moradia, não apenas ainda os obriga a terem suas residências por meio do consumo, e ainda tendo que esperar uma contemplação. Enquanto ela não vêm, as pessoas devem continuar contemplando o céu estrelado à noite, pela falta de uma moradia?
Isto porque, ao que parece, esse direito a moradia expresso do art. 6º da Constituição parece ter deixado de ser um direito, e tornou-se uma mercadoria. E de mercadoria, um ativo financeiro. Assim, do direito à moradia, passamos a ter o direito de consumir a moradia. Sem consumo, sem moradia. Enquanto os casos de desalojamento de famílias de áreas ocupadas permanecem repetindo-se ao longo de nossa história, pelos mais diversos motivos, a lei 11.124/05 transforma o “direito social à moradia” em “Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS, com o objetivo de: I – viabilizar para a população de menor renda o acesso à terra urbanizada e à habitação digna e sustentável; II – implementar políticas e programas de investimentos e subsídios, promovendo e viabilizando o acesso à habitação voltada à população de menor renda; e III – articular, compatibilizar, acompanhar e apoiar a atuação das instituições e órgãos que desempenham funções no setor da habitação”. O direito de morar passou a ser uma política pública, onde o consumo subsidiado é o objetivo.
Os leitores já devem estar se remexendo na cadeira. “Mas como... Então o governo tem que dar moradia de graça agora?” Não, senhores. A iniciativa da lei é louvável, pois beneficia muitas pessoas de baixa renda a conseguir uma casa própria melhor do que provavelmente elas conseguiriam comprar. Também o programa Minha Casa Minha Vida caminha neste sentido. O problema situa-se no intenso processo de combate à pobreza por meio da expulsão de áreas ocupadas. Não nos enganemos, vamos dar nomes aos bois: você só tem direito a moradia se puder compra-la, nem que seja pelo SNHIS. Ocupar não é adquirir, é apenas tomar pra si o que é ou não de direito. 
Em entrevista à Le Monde Diplomatique Brasil, Raquel Rolnik, profª da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) - USP, pronunciou-se a respeito do assunto. “(...) por que essa dimensão entra em contradição com a moradia como um direito? Porque a lógica de produção da moradia como uma mercadoria e ativo financeiro implica vários elementos que minam o direito a moradia. Um deles é que a velocidade de giro do capital exigida para sustentação desse modelo induz à produção das moradias nas franjas urbanas, onde não há cidade, repetindo um modelo histórico de ocupação territorial. O direito a moradia não é o de ter quatro paredes e um teto em cima da cabeça, mas sim uma porta de entrada para uma qualidade de vida decente, uma forma de acesso a outros direitos, como educação, saúde, meio ambiente saudável, trabalho... Ou seja, não é o direito a possuir um bem. Portanto, essas duas lógicas são contraditórias. (...) o elemento material casa construída é uma parte da história, não é toda a história. Pensar a partir dos direitos muda completamente essa perspectiva”.
Coisas assim não poderiam mais ser toleradas no século XXI. Na realidade, caros leitores, não penso que o Estado tenha que se responsabilizar pela moradia de todos, concedendo-a gratuitamente à todos. Pretendo apenas chamar a atenção para como nos esquecemos dos direitos de determinadas parcelas da população as vezes, Fala-se muito na dignidade da pessoa humana, em direitos fundamentais. Mas quando falamos em direito à moradia e função da propriedade, parece que devemos interpreta-los como direito a um financiamento barato, e desde que não ficar nenhum interesse capitalista. Talvez uma função social-capitalista da propriedade? Talvez a justificativa para a reforma urbana do Rio de Janeiro pelo “Bota-Abaixo” tenha sido convincente em seu discurso de sanitarização da cidade. Entretanto, os repetidos episódios de desapropriação por força policial de áreas ocupadas e o incentivo ao consumo de moradia, vão tornando “antigo” direito social à moradia. Só nos resta pensar que, enquanto houver a burguesia da especulação imobiliária, não vai haver poesia para a população carente de dinheiro e de direitos. 

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O plantio da mandioca no norte do Paraná

            Como dizia Vinicius de Moraes em sua canção “Cotidiano nº 2”, “Aos sábados em casa tomo um porre e sonho soluções fenomenais, mas quando o sono vem e a noite morre o dia conta histórias sempre iguais”. Infelizmente, nossos dias ainda contam muitas histórias iguais. É comum que algumas políticas públicas que busquem soluções para determinados impasses sociais sejam contornadas e criem novas situações para serem resolvidas. Quem assistiu o filme “Tropa de Elite 2”, e posteriormente acompanhou a irritante cobertura que foi dada à ocupação do Morro do Alemão por determinada rede de televisão, compreende onde quero chegar. Por mais que a “propaganda” midiática da ocupação de favelas tenha mostrado-se como uma “salvação”, um passo indispensável para o combate ao trafico, a mera exterminação do traficante não representa nenhum arranhão no problema. Ineficiência do Estado “concertada” com demagogo corretivo. Esse foi o recado do diretor José Padilha. Em muitos casos os próprios policiais criam milícias e dominam o trafico antes dominado pelos traficantes. Matar todos os traficantes, por vezes, resulta apenas em outro problema.
            Críticas a parte à ocupação do Morro do Alemão, sabemos que nem sempre que o Estado procura harmonizar algum desequilíbrio social, gera novos problemas. Algumas soluções que encontram guarida no seio institucional tornam o agir estatal de grande valia para a população. Foi assim que, em consonância com seus deveres institucionais, a Procuradoria do Trabalho no Município de Maringá (PTM) buscou um diálogo com diversas associações empresariais e sindicatos da categoria profissional relacionados à cultura da mandioca para impedir irregularidades no trabalho neste setor.
            O cultivo da mandioca, sobretudo no Paraná, caracteriza-se em sua grande maioria por pequenos agricultores, normalmente arrendatários. O que poucos sabem é que este setor tem sido extremamente atingido pelo problema da informalidade. Após diversas fiscalizações realizadas em municípios no noroeste paranaense, os procuradores do trabalho e auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) depararam-se com níveis alarmantes de informalidade e precariedade das condições de trabalho no plantio e colheita da mandioca, em farinheiras e fecularias. Além da falta de registro em carteira, foram verificados diversos casos de absoluto descumprimento de normas de saúde e segurança no trabalho, transportes de trabalhadores inseguros (alguns transportando combustíveis com os trabalhadores), nenhum fornecimento de Equipamento de Proteção Individual (EPI), intermediação de mão de obra por meio de “gatos”, e até uma propriedade onde o pessoal da colheita retirava da terra a mandioca em meio à capim pegando fogo (isso mesmo: arrancavam as raízes com suas próprias mãos enquanto o capim pegava fogo no solo).
O primeiro passo dado consistiu em agendar-se diversas audiências e reuniões com representantes das indústrias, das farinheiras, fecularias, agricultores e sindicatos do ramo, com intuito de dialogar e buscar soluções junto a estes setores para a efetiva regularização da atual situação dos obreiros rurais, bem como a responsabilização das indústrias e farinheiras, para que não comprem matérias-primas fruto de descumprimento de normas de natureza trabalhista e de lesão de direitos fundamentais dos trabalhadores.
Seminário da Cadeia Produtiva da Mandioca realizado em Paranavaí, procurou ouvir opinião dos produtores de mandioca acerca da formalização em carteira de trabalho. Fonte: http://www.fetaep.org.br

Tendo como premissas que contratos e condições de trabalho regulares, agricultores conscientes, e a observância da boa procedência da matéria-prima pelas indústrias sejam uma realidade, o MPT em conjunto com a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Paraná (FETAEP) estão empenhados em um projeto de fiscalização móvel para que as propriedades produtoras da mandioca sejam devidamente fiscalizadas e adequadas às normas trabalhistas. Trata-se de uma força-tarefa com o intuito de fazer valer o ordenamento jurídico trabalhista a este tão castigado setor.
            Importante salientar-se que por meio deste projeto o Ministério Público do Trabalho tem buscado não apenas zelar pelos interesses sociais e individuais indisponíveis dos trabalhadores rurais da lavoura da mandioca, mas também zelar pela própria ordem jurídica, como prevê o art. 127 da Constituição Federal. Isto porque nosso ordenamento jurídico estabelece os institutos da função social do contrato e da responsabilidade social da empresa devem ser observados pelo empresariado, e na cultura da mandioca não pode ser de outra maneira.
            Por fim, saliente-se que política pública nenhuma é ou será capaz de solucionar problemas sociais por completo. Talvez em uma sociedade ideal, como em Castália[1], as mazelas sociais pudessem ser solucionadas em sua essência através da “burocracia estatal” (nos termos de Max Weber). Como vivemos em uma sociedade de homens, e não de anjos ou de sábios iluminados, devemos fazer consigam, pelo menos, alcançar direitos fundamentais para os cidadãos. Iniciativas como esta, direcionadas aos trabalhadores da mandioca, só tendem a acrescentar à sociedade. Sabemos que existem muitos conflitos no âmbito do trabalho especialmente na zona rural, onde prevalecem a informalidade e a desinformação em muitos casos (não restringindo-se apenas ao cultivo da mandioca). Entretanto, não se pode ficar paralisado perante a grandeza do problema, e assim tem trabalhado o MPT, para que pelo menos, esses trabalhadores não tenham soluções apenas em “sonhos” ou “porres”.


[1] “Castália” é uma província fictícia criada pelo escritor alemão Hermann Hesse, no livro “O Jogo das Contas de Vidro”. Trata-se de uma espécie de “república de acadêmicos” extremamente organizada e hierarquizada, um ambiente onde imperava a racionalidade e as pessoas possuíam um amor imanente à sabedoria e ao conhecimento. A única ocupação de seus habitantes é o profundo estudo das mais diversas disciplinas, sobretudo matemática e música. Também denominada “Província Pedagógica” é um lar de intelectuais que não ocupam suas vidas com outra coisa que não seja o profundo estudo dos temas que escolheram.